Única e fascinante

Não há música como a de Galina Ustolvskaya, ela é singularíssima, é urgente continuar a descobrir tão peculiar autora.

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Ustolvskaya foi um daqueles raríssimos compositores que inventaram a sua linguagem, sem qualquer ascendência ou influência Ria Novosty/Alami

Galina Ustolvskaya (1919-2006) foi uma das mais fascinantes e singulares personalidades musicais do século XX. Pouco conhecida em vida, as suas obras sendo de resto rarissimamente tocadas como “modernista” que era – praticamente apenas a Sonata para Violino era interpretada com alguma regularidade –, continua a permanecer substancialmente uma personalidade a descobrir, mesmo que entretanto tenha passado a haver muito mais execuções e vindo a ser publicados discos de obras suas, e ainda assim não tantos.

De 1937 a 1947 foi aluna de Chostakovich, que por ela desenvolveu uma relação amorosa, chegando a perguntar aos seus filhos se aceitariam um casamento seu com ela. O mestre foi também um árduo defensor da obra da discípula, nomeadamente face à oposição da União dos Compositores Soviéticos. Artisticamente, contudo, a relação nada teve a ver com a que é habitual entre mestre e aluno. Na produção de Ultolvskaya não há qualquer influência de Chostakovich enquanto, pelo contrário, ele tinha uma tal consideração por ela que não só solicitou a sua opinião sobre obras que compunha, como inclusive citou o segundo tema do último andamento do Trio de Clarinete de Ustolvskaya no Quarteto de Cordas nº5 e na Suite sobre Versos de Michelangelo – além de que, embora de modo mais indirecto, a austeridade da música dela parece de algum modo ter eco nas obras finais dele. Mas no final da aprendizagem e da relação Ustolvskaya tinha antes uma profunda decepção com Chostakovich.

“Não há relação de qualquer espécie entre a minha e a de qualquer outro compositor, morto ou vivo”, dizia ela, e a frase, que pode parecer pretensiosa, tem contudo uma base de sustentação: Ustolvskaya foi um daqueles raríssimos compositores que por inteiro inventaram a sua linguagem, sem qualquer ascendência ou influência. A recorrência de blocos homofónicos, frequentemente repetidos, é-lhe particular e distintiva. Na sua radicalidade, Ustolvskaya considerava as suas obras (e em concordância com o estilo, a sua produção é muito restrita, de apenas 21 obras, com destaque para cinco Sinfonias – de peculiar instrumentação – e seis Sonatas para piano) inapropriadas para as salas de concerto, imbuídas que são de um profundo espírito religioso, e portanto mais apropriadas para as igrejas.

Se, tal como não tinha ascendência, a sua produção não teve descendência, ainda assim essa religiosidade antecipou uma das características mais salientes da maioria dos compositores pós-soviéticos e ex-soviétcos, de Arvo Part a Sofia Gudaidulina, mas com uma diferença marcante – apesar da sua religiosidade, Ustolvskaya não era praticante, e as suas obras não tem qualquer sentido litúrgico.

Pianista polivalente, que aliás já gravou as seis Sonatas de Ustolvskaya, Markus Hinterhäusen é o maître d’oeuvre deste disco. Fazendo inteiramente jus às características da autora, é um disco em que as interpretações se insinuam numa escuta fascinante.

De facto, não há música como a de Galina Ustolvskaya, ela é por inteiro singularíssima, e esse fascínio das obras e a entrega dos intérpretes, torna urgente descobrir este disco e continuar a descobrir a obra de tão peculiar autora.

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