Uma vida de prisão

Um acto com uma típica assinatura sadiana (ejacula sobre um crucifixo) leva-o pela primeira vez à cadeia. Aí passaria quase 30 anos, até morrer num hospício.

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Retrato Imaginário do Marquês de Sade, por Man Ray

O romance da vida de Donatien Alphonse François, nascido a 2 de Junho de 1740, não é muito diferente das histórias dos seus livros, pois a sua escrita foi uma elaboração altamente intelectualizada, como se se tratasse de um gesto filosófico bem enraizado nalgumas ideias do século XVIII.

O seu pai, conde de Sade, pertencente à nobreza provençal, parece ter-lhe transmitido o gosto pela licenciosidade sexual, muito embora sem chegar aos níveis impensados a que o filho irá elevar-se. Diga-se “elevar” como poderia dizer-se “descer”: o mais blasfemo dos ateus irá fazer do céu um inferno e do inferno o céu. A mãe, que se desinteressou dele e o enviou, aos quatro anos, para casa da avó paterna, conta pouco na sua vida. Aos dez anos, o pai inscreveu-o no colégio Louis-le-Grand, um estabelecimento cheio de pergaminhos. Não será apenas aí, mas também na sua biblioteca pessoal, no castelo de Lacoste, que o jovem Sade se iniciará na leitura. A Nouvelle Heloïse, de Rousseau, é um dos seus “próximos”. A iniciação sexual vem logo a seguir, já que livros e sexo são duas realidades que para ele sempre estiveram numa relação de continuidade: aos 13 anos, durante as férias no castelo de Longueville, o jovem Donatien descobre os prazeres com uma mulher madura que tinha sido amante do seu pai. Não será a única vez que partilham a mesma mulher. Com a princesa de Rache, a partilha chegará a ser simultânea. E o pai, conta-se numa biografia, comenta: “A mim, não me acha demasiado velho; e o meu filho não lhe parece demasiado novo."

Pouco anos depois começam os escândalos, os actos pouco consentâneos não apenas com a moral pública, mas também com a integridade das suas “vítimas”. Mais tarde, já em 1781, numa carta à mulher, enviada da prisão de Vincennes, explica-se: “Cada um tem os seus defeitos – não comparemos, os meus carrascos talvez não ganhassem com a comparação. Sim, sou libertino, confesso-o (...) mas não sou um criminoso nem um assassino." Um acto com uma típica assinatura sadiana  ejacula sobre um crucifixo e comete outras provocações sacrílegas, deixando muito assustada, ao ponto de fazer queixa dele às autoridades, uma prostituta que lhe prestava serviços sexuais – leva-o pela primeira vez à cadeia, inaugurando uma longa permanência que, ao todo, irá perfazer quase 30 anos). Cinco anos depois, vai mais longe: aborda na rua uma rapariga mendiga e, propondo-lhe um trabalho, fecha-a  em casa, chicoteia-a e ameaça-a; a rapariga acaba por fugir e vai queixar-se às autoridades.

Episódios destes repetiram-se tantas vezes que Sade acabou por ser condenado por contumácia. Mas o que teve, para ele, consequências mais nefastas foi a fuga para Itália com a cunhada de 17 anos, que a mãe tinha posto num convento, embora com um estatuto secular. Não é que ela fosse ingénua (as cartas que enviou ao amante provam o contrário), mas a mãe, isto é, a sua sogra, tratou-o como um facínora e, naturalmente, entrou em declarada hostilidade para com o genro. As consequências, no plano económico, foram pesadas (a família da mulher era muito mais rica do que a sua); no plano judicial também, porque a sogra, muito influente, consegue um ano depois, por causa de outro episódio, que Sade seja novamente encarcerado; no pano familiar, o desfecho acabará por ser o divórcio, que a sua mulher reclamou em 1790.

Durante anos, desde o casamento, Madame de Sade tinha sido a mais servil e cúmplice das esposas. Desde os godemichés que lhe levava à prisão para as suas práticas solitárias (a certa altura, na prisão de Vincennes, Sade anotava com grande detalhe as sessões experimentais de masturbação) até ao consentimento e à participação activa, embora a contragosto, em orgias, foi uma santa. Já o marido não o foi tanto (longuíssima é a lista das imprudências públicas e privadas que fizeram da prisão a sua morada quase permanente), apesar de a posteridade lhe ter chamado o “divino marquês”. Estava na prisão da Bastilha em Julho de 1789, tendo dali sido transferido para o hospício de Charenton. Foi lá, aliás, que passou os últimos 13 anos da sua vida e que morreu. Nunca conheceu a glória literária a que tanto aspirou: alguns livros tiveram de ser publicados sem nome de autor, outros só foram publicados postumamente. Mas a glória literária conheceu-o a ele, desde o início do século XX. 

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