“Poucas coisas mudaram nos últimos 400 anos na tradição operática”

Entrevista com Peter Eötvos, um dos mais prolíficos e bem sucedidos criadores de ópera no actual panorama internacional. Lady Sarashina chega ao Teatro São Luiz.

Foto
O compositor e maestro húngaro Peter Eötvös Marco Borggreve

Lady Sarashina, a ópera que o compositor e maestro húngaro Peter Eötvös (n. 1944) escreveu para Ópera Nacional de Lyon, onde foi estreada com grande sucesso em 2008, terá a sua estreia em Portugal esta noite (21h), no Teatro São Luiz, no âmbito da temporada da Orquestra Metropolitana de Lisboa.

O multifacetado mundo interior e as impressões sobre a natureza que emergem do diário de uma dama da corte imperial do Japão, que viveu no século XI, serviram de base a uma composição que procura retratar a ponte entre o sonho e a realidade que emerge dessas longínquas memórias repletas de questões e emoções que permanecem actuais. Na produção de Lisboa (com repetição sábado e domingo), o papel titular será interpretado pela jovem soprano japonesa Imai Ayane, sendo as restantes personagens repartidas entre a soprano Carla Caramujo, a meio-soprano Cátia Moreso e o barítono Peter Bording. O espectáculo conta com a encenação de Rares Zaharia e figurinos de José António Tenente. À frente da orquestra estará Pedro Amaral, antigo aluno de Peter Eötvös e autor de um livro (Parlando-rubato), a publicar em breve, que reúne uma série de conversas com o compositor e maestro húngaro, um dos mais prolíficos e bem sucedidos criadores de ópera no actual panorama internacional.

 Actualmente poucos compositores se dedicam a escrever óperas de forma regular. Quais são os principais desafios que se colocam à criação de uma ópera no século XXI?

 Poucas coisas mudaram nos últimos 400 anos no que diz respeito às bases da tradição operática. No plano da movimentação cénica, do desempenho dos papéis e da música os princípios gerais permanecem os mesmos. A conexão de todos estes elementos parece algo tão natural que é difícil imaginar outra coisa. Também nada mudou em termos das funções da orquestra e dos cantores: todos os participantes têm de ser mediadores do pensamento e dos estados de ânimo das personagens. As mudanças relativas às temáticas e ao estilo musical são mais evidentes antes do século XXI. Um compositor contemporâneo tem todo o conhecimento e experiência acerca do percurso histórico desde Monteverdi até ao presente e pode usar tudo isso à sua maneira.


Em que medida a sua experiência como compositor de música para cinema e teatro se reflecte no seu trabalho no domínio da ópera?

Comecei a escrever obras cénicas para os teatros de Budapeste quando tinha 16 anos. Foi um trabalho muito útil. Tive a oportunidade de aprender detalhes muito importantes com os melhores actores e actrizes, por exemplo as diferenças entre o estilo de vida no plano privado e profissional. As vozes dos actores na cafetaria e depois no palco, onde podem variar o ritmo e o tempo do discurso, são coisas diferentes. Também trabalhei em estúdios de cinema e compus e improvisei música para filmes. Através destes meios ganhei experiência na adaptação do texto à música e da música ao palco. O filme é uma forma de expressão de forte impacto, muda o pensamento dramatúrgico e criava novos valores e caminhos através da montagem técnica, dos pequenos cortes, dos grandes planos, etc. Estou muito interessado neste tipo de técnicas e nas novas tendências da dramaturgia pelo que tento incluí-las e adaptá-las às minhas óperas. Como a técnica cinematográfica é bem conhecida do público, suponho que quando a uso nas minhas óperas se torna facilmente compreensível.


Como nasceu a ideia de criar uma ópera a partir do diário de Lady Sarashina?

 Compus uma peça sobre o mesmo tema, As I Crossed a Bridge of Dreams, onde o papel principal estava dividido entre uma actriz e um instrumento solo, o trombone. O texto falado e a música instrumental funcionavam em simultâneo. Foi uma experiência interessante, uma nova forma de teatro musical. Naquela época li o diário de Lady Sarashina, que tinha sido escrito há mil anos, mas não era de todo antiquado. Os seus poemas e o refinamento da história inspiraram-me a compor essa peça que não se destinava ao teatro de ópera, mas sim a outros espaços. O material musical era muito rico pelo que mais tarde resolvi transformar essa obra numa ópera com o título Lady Sarashina. Mantive a história, adicionei três ou quatro novas cenas e renovei a estrutura.

A concepção do libreto foi da inteira responsabilidade de Mari Mezel ou foi um trabalho de equipa?

Mari Mezel [mulher do compositor]  fez o libreto integral com base na versão inglesa de Ivan Morris e decidiu a dramaturgia e a construção do texto a partir do original. Depois procedemos apenas a algumas adaptações em conjunto de modo a adequá-lo às minhas ideias musicais. Uma vez que partimos de uma experiência anterior — a peça As I Crossed a Bridge of Dreams — já tínhamos ideias sobre como modificar a dramaturgia em função do palco de ópera. Aspectos como a dualidade entre a música e a cena, a tensão e relaxe, a realidade e o sonho eram questões fundamentais.

O texto evoca os sonhos e as contemplações da natureza de uma dama japonesa na Idade Média. Que recursos musicais usou para os transmitir?

 O texto é uma cativante peça-sonho, como tal a música é também algo entre a realidade e o sonho, por vezes próxima, outras vezes distante. Nunca sabemos se é um verdadeiro som que provém de um instrumento ou da voz humana ou se é apenas um murmúrio que vem de um mundo distante. Tentei criar essa sensação através de efeitos específicos e também de alguns sons pré-gravados.

Como descreveria a personalidade de Lady Sarashina?

É uma mulher de mentalidade moderna, a sua atitude é universal. A maneira como pensa e como reage não pode ser reduzida a limites geográficos ou à questão das mentalidades do Oriente e do Ocidente. O tema atraiu-me por ser tão familiar, muito contemporâneo e nada estranho para o público de hoje. O seu diário mostra a vida interior de uma mulher sensível, cuja independência é surpreendente no contexto daquela época.

 Quais são as suas principais preocupações em relação à escrita vocal e à escolha da instrumentação?

 Escrevo para cantores que vêm do repertório tradicional. Os requisitos mais importantes são a clareza do texto e uma presença forte em palco. Quanto à instrumentação, trabalho como um pintor, que escolhe as cores para um quadro. Ouço aquelas cores interiormente antes de começar a compor. Tenho uma ideia do mundo-sonoro e escolho os instrumentos em função disso logo no início. Em geral é raro fazer mudanças a esse nível ao longo do processo de composição.

Dirigiu a estreia de Lady Sarashina em Lyon, mas em Lisboa será Pedro Amaral a dirigir a orquestra. Qual é a sensação de assistir às suas obras conduzidas por um maestro diferente?

Escrevi mais de dez óperas, todas elas já foram dirigidas por outros maestros. É uma boa experiência perceber o que outros podem adicionar a partir do seus pontos de vista. Quando dirijo as minhas óperas estou ao mesmo tempo atento aos problemas que aparecem. Por exemplo se um cantor ou cantora precisa de correcções na sua parte faço essas alterações imediatamente. O compositor nunca deixa de estar presente. Um maestro convidado interpreta a obra a partir da partitura e acrescenta a sua dimensão pessoal.

 O que nos pode dizer sobre a sua nova ópera, Senza Sangue, a partir do romance de Alessandro Baricco?

Estou mais ou menos a meio da composição e estou muito entusiasmado! É um grande desafio criar uma ópera em um acto para ser interpretada em conjunto com O Castelo de Barba Azul, de Béla Bartók e uma honra ter recebido esta encomenda da Filarmónica de Nova Iorque.

Sugerir correcção
Ler 1 comentários