Um texto armadilhado com rasteiras à verdade

No Teatro da Politécnica, em Lisboa, Os Possessos levam a palco A Mentira, peça inspirada numa trilogia da escritora Ágota Kristóf. Um texto armadilhado por rasteiras à verdade.

Fotogaleria
Os Possessos levam a palco A Mentira, peça inspirada numa trilogia da escritora Ágota Kristóf. Um texto armadilhado por rasteiras à verdade Alípio Padilha
Fotogaleria
Alípio Padilha
Fotogaleria
Alípio Padilha
Fotogaleria
Alípio Padilha

Num prefácio à trilogia da escritora húngara Ágota Kristóf formada por O Caderno Grande, A Prova e A Terceira Mentira, o filósofo Slavoj Žižek revelava que a primeira vez em que ouviu falar da autora pensou tratar-se de uma distorção pelo sotaque da Europa de Leste do nome Agatha Christie. “Mas rapidamente descobri que não apenas Ágota não é Agatha, como o horror de Ágota é muito mais terrífico do que o de Agatha”, acrescentou.

A história dos dois gémeos de O Caderno Grande (retomada e desfeita nos dois livros seguintes) coloca-os numa pequena cidade da Hungria no período entre o final da II Guerra Mundial e o início do jugo comunista. Todo o texto é depois minado pela mentira com que Claus e Lucas, os gémeos, vão repegando na sua história. Por sugestão de Jorge Silva Melo, director dos Artistas Unidos, o actor João Pedro Mamede entregou-se à “odisseia” da procura dos três romances por alfarrabistas. Quando conseguiu descobrir-lhes o rasto, leu-os “de uma assentada” e confessa ter-se “reconciliado com uma série de coisas relativas aos processos teatrais”.

“Estávamos num período negro”, diz ao PÚBLICO sobre essa fase em que Os Possessos, grupo que formou com Catarina Rôlo Salgueiro e Nuno Gonçalo Rodrigues, não sabiam se conseguiriam levar à cena a sua primeira criação de fôlego, Rapsódia Batman – estreada no Teatro da Politécnica em Outubro de 2014. Ultrapassada essa crise, os três convocaram um grupo de actores com quem queriam trabalhar e formaram um clube de leitura dedicado em exclusivo à trilogia de Kristóf. “Foi então que comecei a escrever uma primeira parte do texto a partir de cenas da Ágota Kristóf para construir um espectáculo fragmentado que não queria ser uma adaptação da sua obra”, esclarece João Pedro, autor e encenador de A Mentira, peça estreada sexta-feira no Teatro da Politécnica, casa dos Artistas Unidos em Lisboa, onde estará até 18 de Abril.

A decisão de ficar

Se a primeira parte da peça se baseia nessa leitura de Kristóf, a segunda parte é deflagrada pela constatação d’Os Possessos de que “os livros estão sempre a desmentir-se sucessivamente”. “O terceiro volume, a Terceira Mentira, diz-nos que os dois primeiros romances são falsidades”, diz João Pedro Mamede. “A história está sempre a ser recontada, a crueldade e os eventos estão sempre a ser recontados e perspectivados de formas diferentes.” É essa ideia que leva, a dado momento, os actores a amotinar-se e a boicotar o espectáculo ao proporem que certas cenas sejam refeitas e que a história seja contada de uma outra maneira. Uma forma, argumentam, de entrarem em diálogo com a própria obra de Kristóf.

Claus, o gémeo que em A Mentira procura o seu irmão e vampiriza a biografia deste, torna-se repentinamente o encenador de uma peça de teatro dentro da peça a que assistimos. Trata-se de uma estratégia, confirma João Pedro Mamede, a que Os Possessos recorrem para frisar a constante manipulação da narrativa por parte dos protagonistas. “Sintetizei a obra no espaço mental de uma personagem e todas as outras foram escolhidas porque eram aqueles que mais me interessavam para participar nesse espaço”, esclarece o verdadeiro encenador. “A minha ideia era fazer um espectáculo que derivasse dessas várias versões da verdade, que se recontasse e aproximasse da verdade mentindo.”

Subterraneamente, A Mentira volta a tratar também de uma inquietação que já alimentava Rapsódia Batman: a cidade como centro nevrálgico da acção, a partida e a chegada relacionada com o recente fluxo de emigração portuguesa que Os Possessos dizem ter deixado marcas em toda a sua vida próxima. Por isso, as personagens de A Mentira tomam a cena e saem sem, de facto, deixar o palco. Ficam ali, à espera de vez, numa dos mais interessantes movimentos de uma peça que, de início, parece verdadeiramente uma coreografia sobre essa recusa da partida.

Sugerir correcção
Comentar