Uma outra versão da América

Escritor e activista, foi a voz ardente da luta contra a sida na década de 80. Publicou um novo livro, The American People, onde faz uma leitura gay sobre a história dos EUA. Larry Kramer acredita que só o ouvem quando fala muito alto.

Foto
Larry Kramer e o actual marido, o designer David Webster, com quem se casou em Julho de 2013

Uma aura de fascínio envolve Larry Kramer, espécie de guerrilheiro chegado à reforma, última testemunha do tempo em que a rua era o primeiro cenário das lutas políticas. Aos 80 anos, mantém o carisma, mas o tempo da rua acabou. Sobra o escritor, que sempre foi em paralelo com o activista por direitos dos minorias sexuais.

Vive na Praça Washington, ao início da 5ª Avenida, a zona mais cara de Nova Iorque, num apartamento forrado a livros e luz, como descrevia há dias o Los Angeles Review of Books. A saúde está frágil. Tem um aspecto débil, dificuldade em ouvir, a voz sai-lhe áspera e sumida, em 2013 esteve às portas da morte depois de uma operação aos intestinos.

E, no entanto, foi nos últimos anos que terminou um romance cuja ideia nasceu há mais de 30 anos: The American People: Volume 1, com o subtítulo Search for My Heart. Saiu em Abril nos EUA e tem sido resumido como um romance de não-ficção, em registo mágico, onde os presidentes George Washington, Lincoln e Nixon são declarados homossexuais – ideia antiga que vários autores têm defendido.

“Não escrevi uma fantasia, acredito que estes homens eram homossexuais, é factual”, declara o autor ao Ípsilon (uma conversa que demorou quatro meses até se concretizar). “Poderiam não ser classificados como gays, à época, mas ao longo da história sempre soubemos reconhecer outros iguais a nós.”

Foto

Suspendeu a vida
Ele sabe do que fala. Entre 1982 e 1996, suspendeu a vida para se tornar líder de um movimento social que deu voz política aos homossexuais que morriam com sida, entregues aos medos da medicina, sob o olhar cúmplice da administração Reagan. Militou por uma minoria trancada a sete chaves. Foi a voz ardente dos infectados. Em nome de uma ideia, descompôs políticos, médicos e jornalistas, foi agressivo com amigos, organizou marchas e manifestações contra o governo e a indústria farmacêutica. Quis salvar da morte milhares de vítimas da sida.

Olha-se agora ao espelho e reflecte: “Sou a mesma pessoa que aparece em Um Coração Normal.” Refere-se à personagem Ned Weeks, interpretada por Mark Rufallo no telefilme homónimo, realizado por Ryan Murphy para a HBO, que se estreou em Portugal em Julho do ano passado, no canal por cabo TVCine. O argumento baseou-se na peça de teatro The Normal Heart, escrita por Kramer em 1983. “É um filme nu e cru, muito autobiográfico. Ainda sou a mesma pessoa: irado e optimista, apenas mais velho”, reconhece.

Essa ira indomável, contrária à imagem dos homossexuais da década de 80, tornou-o coleccionador de inimigos. E foi, provavelmente, para não coleccionar outros tantos que The American People aparece classificado pela editora, Farrar, Straus and Giroux, como romance, e não ensaio.

“Algumas pessoas sobre as quais escrevo ainda estão vivas, dizer que o livro é um romance poupa a editora a certos medos e obrigações”, justifica. “Preferia que o tivessem classificado como livro de história, mas neste país só há duas categorias, ficção ou não-ficção, e algumas partes do livro são ficcionais, o que implica ser considerado um romance.” Mas “não é ficção, é história”, enfatiza.

Larry Kramer (Lawrence D. Kramer) representa a geração intermédia do movimento LGBT (lésbicas, gays, bissexuais e transgénero). Já não o activista de 1969, de curta identidade social. Ainda não o activista profissional dos nossos dias, apoiado por juristas e sentado no parlamento. Aos 46 anos, deu corpo a um movimento LGBT que naquela época estava transtornado com a sida e a indiferença das autoridades. Deu nome aos adversários e foi à luta. Se Harvey Milk (1930-1978), activista homossexual eleito em 1978 para um cargo político em São Francisco, com direito a filme biográfico de Gus Van Sant (Milk, 2008), foi o herói romântico do movimento, Larry Kramer foi o radical implacável.

“Penso que a raiva é uma forma de motivação para a minha escrita e para as minhas intervenções públicas”, analisa. “A raiva é uma emoção positiva, ou, pelo menos, pode ser. Na vida privada, sou calmo e tímido. Não sou mestre de cerimónias, prefiro ficar de parte, a ouvir e observar.”

Crucificado pela comunidade
Terá sido sempre assim. O documentário Larry Kramer in Love & Anger (2015), de Jean Carlomusto, apresentado no festival de cinema independente de Sundance, resume a infância e juventude como um período de interditos.

Nasce em 1935 na costa Oeste dos EUA: Bridgeport, a maior cidade do estado do Connecticut. O pai, George Kramer, é advogado, descendente de judeus russos, nascido nos EUA, infeliz com o filho, a quem chama maricas. A mãe, Rea W. Kramer, trabalha como assistente social na Cruz Vermelha, judia nascida na Rússia e criada nos EUA. Mudam-se para Hyattsville, nos subúrbios de Washington DC, onde Kramer cresce triste, com poucos amigos e um mundo só seu. A amizade mais forte será a do único irmão, Arthur Kramer (1927-2008).

Estuda arte na Universidade de Yale e aí tenta de suicídio, por se sentir o único homossexual, o último, da universidade. Em 1958 começa a trabalhar para a Columbia Pictures, como argumentista, e em 1961 é enviado para Londres, centro da produção cinematográfica de então. É aí que começa a fazer psicanálise, o que virá a relatar como uma experiência libertadora.

Quando regressa aos EUA, em 1964, trabalha na United Artists. Torna-se notado o argumento de Mulheres Apaixonadas (Women in Love), de Ken Russell, que Kramer escreve a partir do romance de D. H. Lawrence, tendo incluído uma cena de luta entre dois homens com óbvia carga erótica. É nomeado para o Óscar de Melhor Argumento Adaptado, em 1970.

Depois de vários anos a escrever peças que acabam no circuito off-off-Broadway, o mesmo é dizer, feitas por amadores ou quase sem público, começa a ser reconhecido como escritor: com Faggots, de 1978, romance que o tornará igualmente odiado.

Estava apaixonado por aquele que viria a ser o actual marido, o designer David Webster, com quem se casou em Julho de 2013. Mas não era correspondido e entendia que o problema era o estilo de vida gay. Levou o desgosto para o romance.

Faggots, editado pela Random House, é uma diatribe sobre as festas, as drogas e o sexo livre em Nova Iorque, centrada naquilo que Kramer via acontecer na Fire Island, língua de terra encostada a Long Island, paraíso gay durante o Verão, hoje tornada estância de turismo de luxo.

Foto

Kramer não participava no entretenimento, entendia que os homossexuais, por querem afirmar-se, estavam a viver à margem das regras da sociedade. Autómatos sexuais que vivem do hedonismo, escreveu ele, para logo ser crucificado pela “comunidade” que pretendia retratar.

O livro há-de servir a tese de Kramer de que, na era da sida, a abstinência era a única forma de se travar o avanço do VIH. E hoje, na era do casamento para todos, serve o discurso conservador, segundo o qual o reconhecimento social dos homossexuais passa pela adopção de uma conjugalidade semelhante à heterossexual – e Larry Kramer revê-se nisso, como se verá adiante.

A praga chega em 1981. “Novo tipo de cancro”, “cancro gay”, “doença dos quatro hh”: homossexuais, hemofílicos, heroinómanos e haitianos. Só em 1982 a comunidade médica começa a falar em sida: síndrome da imunodeficiência adquirida. Só em 1984 é identificado o vírus que causa a infecção. Mais de 50 mil casos entre 1981 e 87; 202 mil casos entre 1988 e 92.

O ritmo galopante nos EUA não aconteceu em Portugal ao mesmo tempo. Houve três casos diagnosticados em 1983, primeiro ano em que há registos do Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge. 1992: 1101 casos. 2000: o maior número de diagnósticos até hoje, 3051. Até 2013, último ano para o qual há informações, tinham morrido em Portugal 9880 pessoas infectadas pelo VIH.

Nos EUA, de acordo com números dos Centros de Controlo e Prevenção de Doenças (CDC), houve 659 mil mortes até agora, incluindo 311 mil homo e bissexuais.

Guerra de palavras
Kramer não estaria a exagerar quando percebeu que a primeira guerra era a das palavras. “A sida não é uma epidemia, é uma praga”, gritará à exaustão, numa retórica do apocalipse que lhe valeu muitas críticas.

Sem passado político ou activista, parece ter-se limitado a copiar o que vira a mãe fazer durante toda a vida: ajudar o próximo, criticar o sistema e reivindicar ajuda das autoridades. É ele quem o reconhece no documentário ACT UP Oral History Project (2003).

Em 1982, é um dos fundadores do Gay Men’s Health Crisis (GMHC), que começa por ser uma linha telefónica de ajuda para os homens que estão a morrer com sida e não sabem o que fazer. Nos anos seguintes, distribuem panfletos e cartazes com informação, organizam um leilão de recolha de fundos, transformam-se num grupo de pressão. Kramer e cinco activistas principais: Nathan Fain, Larry Mass, Paul Popham, Paul Rapoport e Edmund White. Visitam hospitais e vão ao quarto dos doentes dar-lhes uma última palavra de conforto.

Kramer culpava a imprensa e os políticos pela disseminação da doença: uns porque não noticiavam o tema, os outros porque não libertavam orçamento para investigação científica. Histriónico e bilioso, temperamental para com os pares, acusava os líderes do movimento LGBT de irresponsabilidade, por, em seu entender, promoverem a libertação sexual em vez de clamarem por celibato.

São anos de urgência. Kramer volta a Londres no Verão de 1983 e escreve desenfreadamente The Normal Heart, reza a lenda que em seis semanas. A peça estreia-se no Public Theatre, de Nova Iorque, em Abril de 1985, com direito a crítica no “New York Times”, assinada por Frank Rich: “É a peça mais desabrida do momento e fala de um tema que tem justificado o sentido de urgência do autor, incansável, se não histérico.”

Foto
Deu voz política aos homossexuais que morriam com sida, entregues aos medos da medicina sob o olhar cúmplice da administração Reagan

The Normal Heart mostra também como se dá a cisão entre ele e os outros activistas do GMHC. “Era um ser funesto, afastei muitos dos meus amigos”, reconhece no documentário Larry Kramer in Love & Anger.

Em 1987, sai para fundar a ACT UP – AIDS Coalition to Unleash Power, que recruta dezenas de voluntários, quase todos com menos de 30 anos. É nesse ano que aparece o conhecido cartaz “Aidsgate”, com Ronald Reagan de olhos lilases, como que manchados pelo sangue dos mortos da sida. Uma criação do colectivo de artistas Gran Fury, braço de propaganda da ACT UP, que os portugueses puderam ver em 2009 na exposição de cartazes “Ombro a Ombro”, no MUDE – Museu do Design e da Moda, em Lisboa.

Foto

1987 é também o ano em que Reagan usa a palavra sida pela primeira vez em público e surge no mercado um medicamento pioneiro, o AZT, que custa 10 mil dólares por ano a cada pessoa, lê-se no site da GMHC. Os activistas da ACT UP irrompem em Wall Street para denunciar aquele preço escandaloso, depois invadem uma cerimónia religiosa na catedral de São Patrício para contestar a oposição da igreja católica ao uso do preservativo. Muitos são detidos pela polícia, mas tornam-se notícia. As vítimas da sida saiam do silêncio. No ano seguinte, Larry Kramer descobre que é seropositivo.

The American People é ainda sobre a praga, mas vai mais além. “Comecei a escrever o livro quando terminei Faggots”, conta. “Interrompi muitas vezes, sobretudo por causa do meu estado de saúde.” É portador de hepatite B desde o fim dos anos 70 e seropositivo para o VIH desde 1988. “Só me dediquei a tempo inteiro a The American People depois do transplante do fígado, em 2001.”

O livro é um palimpsesto sobre a história americana, uma narrativa errante com elementos de fantástico. Há vários sujeitos que enunciam, o que permite “contar diversas camadas de uma história complicada”, explica. “Gosto de lidar com diversas vozes, muitas das quais são de mulheres, neste caso. Gosto muito de escrever sobre mulheres e não tinha tido oportunidade de o fazer na escrita sobre a sida.”

Se Faggosts foi a reacção à vida gay da década de 70 e The Normal Heart reagia à era da sida, The American People reage a quê? “Entre outras coisas, é uma tentativa de contar a história da homossexualidade na América desde a fundação. Nenhum livro de história alguma vez o fez era tempo de corrigir esta exclusão. Fala também sobre a maneira como outras minorias são tratadas: os negros, as lésbicas, os judeus.”

Não são apenas os ex-presidentes que aparecem fora do armário à força. O mesmo acontece com os escritores Mark Twain e Herman Melville. “Como trabalho de paixão persistente, é formidável; como obra de arte, é mesmo muito modesto”, criticou o “New York Times”, que aparece escarnecido sob a designação “New York Truth”.

Foto

“Escrevi sob um ponto de vista gay, porque sou gay e quase toda a historiografia tem sido feita por heterossexuais sem noção do que fomos e somos”, clarifica Kramer. “Muito me admiraria se os historiadores pegassem na minha versão da história deste país, mas duvido que o façam, pelo menos para já. Parece que sempre estive à frente do tempo. Quando Faggots saiu, foi ostracizado, agora é considerado profético.”

Mais activista que escritor (nunca traduzido em Portugal), continua a intervir em público sobre sida e homossexualidade. Mais ainda numa época como a nossa, em que os EUA e a Europa têm registado um aumento no número de novas infecções entre homo e bissexuais – a fazer lembrar o início da epidemia. Continua a intervir, mas afastado dos holofotes.

Casou-se em 2013, meses depois de o Supremo Tribunal dos EUA ter anulado o Defense of Marriage Act, lei de 1996 que definia o casamento como uma união entre homem e mulher e proibia o reconhecimento federal de casamentos celebrados em qualquer estado – ainda que o casamento gay já fosse legal em Nova Iorque desde 2011. “Vivíamos juntos há muitos anos e decidimos que não iríamos casar enquanto não tivéssemos exactamente o mesmo que os heterossexuais”, resume. O segundo volume do livro deverá estar para breve.

Sugerir correcção
Comentar