Uma orquestra de vozes que diz poemas

As palavras de Al Berto, Cesariny ou Ana Hatherly são o mote para um espectáculo em que uma vintena de anónimos se apodera de poemas portugueses sobre a cidade. Chama-se Recital Popular, integrado no Festival Silêncio.

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O Museu das Comunicações receberá este espectáculo gratuito que começou por um desafio do Festival Silêncio a Margarida Mestre
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Ouvimo-los falar de uma “fluorescência pálida do plâncton” ou de “duas fanecas que viviam no aquário municipal” e estes homens e estas mulheres das mais variadas idades, formas e feições recitam como quem mastiga vagarosamente cada palavra.

Margarida Mestre, a ensaiadora, desacelera-lhes o discurso, torna cada sílaba entendível e vai dirigindo o ensaio no Museu das Comunicações, em Lisboa, como quem tem diante de si uma orquestra. Mas uma orquestra popular, formada por espontâneos que se inscreveram depois de se sentirem desafiados pelo apelo feito nas redes sociais ou pelos cartazes espalhados nas ruas do Cais do Sodré a pedir voluntários para um recital com uma abordagem ao texto próxima da spoken word e da poesia sonora, entre o falado e o cantado. É, portanto, uma orquestra que diz palavras – recolhidas de textos de Abel Neves, Al Berto, Mário Cesariny, Ary dos Santos ou Ana Hatherly.

A 4 e 5 de Julho, pelas 19h, o Museu das Comunicações receberá este espectáculo gratuito que começou por um desafio do Festival Silêncio a Margarida Mestre para montar um acontecimento que se relacionasse com a sua prática de recitais para adultos e crianças que tem apresentado no Teatro Viriato (Viseu), no Festival Todos (Lisboa), em Vila do Conde, Alcanena ou Ferreira do Alentejo. “Como ganhei confiança em trabalhar com grupos, fiz esta proposta de estabelecer uma ponte com a comunidade, que era uma coisa que não via que estivesse a ser feita”, justifica.

O primeiro impulso para a criação do Recital Popular passou, por isso, por uma vontade de trabalhar com os habitantes do Cais do Sodré, “os comerciantes, vizinhos ou amigos” com que a dinamizadora se cruza diariamente. Mas a diversidade da origem geográfica dos inscritos acabou por ditar um espectáculo menos circunscrito ao bairro, mais extensível à cidade. Como a confirmação de que se reuniam as condições para avançar com o Recital Popular chegou mais tarde do que o previsto, Margarida Mestre prescindiu de realizar um trabalho mais aturado de pesquisa junto dos moradores, a partir do qual se propunha criar textos nascidos das considerações destes sobre o Cais do Sodré. Acontece, também, que deixou de reconhecer-se inteiramente no bairro.

O que é o Cais do Sodré?
“Já não sei muito bem o que é o Cais do Sodré”, admite. “Vivo aqui há uma série de anos mas houve uma subida de gente a vir para cá, há uma enorme oferta de serviços diurnos e nocturnos, há muita gente a ocupar o bairro constantemente e muito lixo. As lojas antigas, das fardas, dos produtos africanos, desapareceram todas e deram lugar a bares, bares, bares e cafés.” Por isso, diante de uma identidade que hoje lhe parece “esvoaçante, diluída”, a ex-bailarina de dança contemporânea preferiu recentrar o espectáculo em textos de autores portugueses sobre a cidade, ainda que “com uma tónica forte na proximidade do rio” e procurando sempre nesses poemas “uma ligação com aquelas que são as características da zona”.

No espaço de algumas semanas, Recital Popular toma forma num encadeamento vagamente encenado da leitura de poemas, com um discreto acompanhamento musical ao contrabaixo, tomando por base um trabalho que Margarida Mestre vem desenvolvendo desde 2000/2001, altura em que, ainda como bailarina, usufruiu de uma bolsa de investigação artística durante dois anos em Nova Iorque, desviando-se progressivamente da dança e aproximando-se cada vez mais da palavra que, no entanto, é trabalhada com uma noção de movimento. E é esse movimento e a musicalidade que lhe estão aqui associados, espantosamente adoptados por esta vintena de anónimos que, sem receio, se agarra às palavras e as lança para o público – como se cada uma tivesse uma forma física e pudesse estatelar-se aos nossos pés.

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