Uma oratória entre o passado e o presente no Teatro São Luiz

Escrita em 1786 para a corte de D. Maria I, a oratória Ester, de António Leal Moreira, entra em diálogo com a música dos séculos XVII e XXI através da nova produção do Estúdio de Ópera da Escola Superior de Música de Lisboa

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José Frade
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O Estúdio de Ópera da Escola Superior de Música de Lisboa (ESML) apresenta esta sexta-feira e sábado, às 21h, no Teatro São Luiz, um espectáculo fora do comum que combina a recuperação de uma importante obra do repertório dramático português setecentista — a oratória Ester, de António Leal Moreira (1758-1819), composta em 1786 para a corte de D. Maria I — com uma nova abordagem do ponto de vista cénico e teatral, na qual a música de outras épocas (nomeadamente a Lamentação seiscentista de Diogo Dias de Melgás e uma peça da jovem compositora Sara Ross) é também chamada a intervir.

Com direcção artística de Nicholas McNair, que foi também o responsável pela edição moderna da partitura de Leal Moreira, o Estúdio de Ópera da ESML não se limita à montagem e rodagem do repertório convencional como parte da formação dos seus membros, afirmando-se antes como um espaço criativo onde alunos e profissionais da música e outras artes do espectáculo partilham experiências e ensaiam diferentes formas de revitalização da ópera. Conforme se pode ler no programa, “um cuidadoso trabalho de investigação pode trazer à luz surpresas do passado, tradições de interpretação que se perderam, e peças que merecem uma nova abordagem”.

Depois de Paride ed Elena, de Gluck, com encenação da bailarina e coreógrafa Clara Andermatt em 2012 (também no São Luiz), a aposta centrou-se agora em Ester, de Leal Moreira, contando com a colaboração de Luca Aprea no campo da direcção teatral e do espaço cénico (em conjunto com o arquitecto Stefano Riva). Entre vários outros trabalhos, o actor e encenador italiano Luca Aprea tem-se distinguido na encenação de várias óperas do século XVIII em colaboração com os Músicos do Tejo, incluindo obras de Francisco António de Almeida, Pergolesi e Detouches. Os figurinos foram concebidos por José António Tenente e o elenco inclui vários jovens cantores profissionais (Carolina Figueiredo, Patrycja Gabrel, Pedro Cachado, Manuel Brás da Costa, Rita Marques e Pedro Matos) em conjunto com os alunos e professores da ESML que formam a Orquestra e o Coro do Estúdio de Ópera. A direcção musical é de Jan Wierzba.

A oratória Ester, de Leal Moreira e Gaetano Martinelli (libretista), foi cantada no Paço da Ajuda a 19 de Março de 1786 para assinalar o dia onomástico do príncipe D. José (1761-1788). Foram intérpretes os principais cantores italianos da Capela Real, incluindo castrati como Carlo Reina, Giovanni Ripa e Ansano Ferracuti, e a componente instrumental esteve a cargo da Orquestra da Real Câmara. A opção por uma oratória, em vez de por uma ópera ou uma serenata, prendia-se com o facto de apresentação ter ocorrido na época da Quaresma. No entanto, as temáticas de carácter religioso da oratória eram tratadas numa linguagem musical muito próxima das do género da ópera séria.

No espectáculo em cena no São Luiz, Ester será apresentada com encenação (uma prática que não era habitual no caso das oratórias setecentistas) e vai entrar em diálogo com música de outras épocas. Não se pretende portanto fazer uma reconstituição histórica, mas usar a obra setecentista de Leal Moreira como ponto de partida. Evocando a tradicional festa judaica de Purim (que comemora a salvação dos judeus persas do plano de Hamã no antigo Império Aquemênida, tal como está escrito no Livro de Ester), é apresentada a história bíblica de Ester, a rainha escolhida pelo Rei Assuero sem saber que a mesma é judia. No início do libretto de Gaetano Martinelli menciona-se um "coro do povo da Israel", mas na partitura original de Leal Moreira este é atribuído aos solistas. 

Na linha do primeiro projecto do Estúdio de Ópera (o já referido Paride ed Elena de Gluck), optou-se assim por envolver um verdadeiro coro activo ao longo da peça que, entre outras coisas, irá cantar a belíssima Lamentação da Quinta-feira na versão polifónica de Diogo Dias Melgás (1648-1700), cujo texto remete precisamente para o "povo da Israel" e aparece repartido em 11 pequenas secções.  

Juntou-se ainda um olhar do século XXI em diálogo com as linguagens do passado, sob a forma dos Alentos, criados pela jovem compositora Sara Ross (n. 1989), nascida em São Miguel (Açores) e licenciada em Composição pela ESML. Nas palavras da própria compositora, estes são “breves reflexos musicais inseridos na narrativa e concebidos como um gesto de amplificação dos estados de alma consequentes da acção”. Sara Ross define-os como “abstracções sem tempo reveladas através de símbolos musicais recriados a partir da cantilação hebraica”, ou seja, do tipo de entoação indicada pelos símbolos diacríticos anotados no texto da Bíblia hebraica.

Estas reflexões do nosso tempo servirão de eco à música dramática de António Leal Moreira, um dos mais importantes compositores portugueses dos finais do século XVIII e inícios do século XIX. Nascido em Abrantes, Moreira formou-se no Seminário de Música da Patriarcal, tornando-se mais tarde num dos mais prestigiados mestres dessa instituição.

Em 1777, a sua Missa do Espírito Santo foi cantada na Aclamação de D. Maria I e a partir dessa data compôs várias obras sacras para a Patriarcal e para a Capela Real da Ajuda, bem como serenatas e óperas para os teatros reais. Em 1790 tornou-se director do Teatro da Rua dos Condes e em 1793 dirigiu a récita inaugural do Teatro de São Carlos do qual foi director musical até 1799. Foi também autor de modinhas, peças instrumentais e óperas cómicas em português, como A Saloia Enamorada (1793) e A Vingança da Cigana (1794), estreadas no Teatro de São Carlos.

 

 

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