Uma ópera em árabe, um Mozart mussoliniano: política à vista em Aix-en-Provence

O cineasta francês Christophe Honoré abre esta quinta-feira um dos mais importantes festivais de ópera do mundo com um Così fan tutte transposto para a Eritreia ocupada pela Itália fascista.

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A imagem de divulgação do Così Fan Tutte de Christophe Honoré ANTOINE D'AGATA/MAGNUM

O Festival Internacional Lírico de Aix-en-Provence, um dos mais criativos da cena operática mundial, vai estrear cinco novas produções, entre as quais um Così fan tutte, de Mozart, encenado pelo cineasta Christophe Honoré, e a primeira ópera em árabe da sua longa história, iniciada em 1947. Outro dos destaques desta edição será O Triunfo do Tempo e do Desengano, de Händel, encenação do polaco Krzysztof Warlikowski com a estrela em ascenção Sabine Devieilhe.

Nesta edição que decorre de 30 de Junho a 20 de Julho, o festival cumpre a sua tradição mozartiana com este novo Così Fan Tutte, mas confiando a missão a um realizador que preferiu transpor a ópera para a Eritreia ocupada por Mussolini. Honoré, descreve o caderno pedagógico preparado pelo festival para enquadrar a produção, quis abordar "a questão da alteridade através de uma série de pares no contexto da Itália colonial dos anos 30: masculino/feminino, colono/autóctone, branco/negro". Para isso, escolheu por exemplo transformar Ferrando e Guglielmo em soldados africanos incorporados no exército mussoliniano; os seus rostos estarão pintados de negro ("um blackface insensível e racista"), evocando a tradição norte-americana dos minstrel shows como forma de "abrir uma reflexão sobre o racismo". E, também, sobre o significado do recurso ao blackface na actualidade, questão espinhosa ainda recentemente colocada a propósito da actriz escolhida para encarnar Nina Simone num biopic e, mais genericamente, da subrepresentação dos afro-americanos no cinema de Hollywood.

Così Fan Tutte de Honoré será dirigido alternadamente pelos maestros Louis Langrée e Jérémie Rhorer, e contará, entre outros intérpretes, com a soprano francesa Sandrine Piau e a mezzo americana Kate Lindsey.

Presença habitual no festival, onde ainda há um ano montou a Alcina de Händel, a britânica Katie Mitchell vai encenar Pelléas e Mélisande com um elenco de topo (Stéphane Degout, Barbara Hannigan e Laurent Naouri) e direcção musical do finlandês Esa Pekka-Salonen. Por sua vez, o encenador americano Peter Sellars, que também passou por Aix em 2015, apresenta este ano o Édipo Rei de Igor Stravinski que criou em 2009 com a Los Angeles Philharmonic.

Absolutamente inédita será a apresentação de uma ópera em árabe e francês, Kalila wa Dimna, a partir de uma recolha de fábulas tão populares no mundo árabe como as de La Fontaine são para os franceses.

O festival teve entretanto de adiar para 2018 a produção Seven Stones, inicialmente programada para esta edição. A redução do financiamento público, a morte de um mecenas e a desistência de alguns co-produtores comprometiam o espectáculo. "Estamos sempre no fio da navalha, e por prudência preferimos adiar o espectáculo para o produzirmos em melhores condições", disse à AFP o director-geral-adjunto François Vienne. A angariação de coprodutores revela-se, de resto, cada vez mais difícil num contexto de crise económica, explicou ainda.

O Festival d'Aix-en-Provence, um dos mais generosamente dotados de França, com um orçamento de 23,5 milhões de euros este ano, continua a desenvolver fortemente as suas receitas próprias: co-produções, bilheteira, mecenato e digressões. O mecenato, de resto, pesa já mais, com 4,6 milhões de euros, do que a subvenção do Estado, de 3,7 milhões.

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