Uma monstruosa representação do amor

Mickaël de Oliveira e Nuno M. Cardoso pegaram numa mãe e numa filha, enfiaram-nas dentro de uma casa e puseram-nas a planear assassinar um presidente e fugir para a Noruega. Mas em Oslo – Fuck them All and Everythig Will Be Wonderful só contam o grotesco e a ausência de amor.

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Nuno M. Cardoso

A filha faz 35 anos. A mãe, rodeada de alguns convidados, propõe um brinde: “Vocês, aqui, à volta desta mesa, são quem nós temos, os verdadeiros amigos que nunca fugiram.” Ergue o copo com champanhe, desculpa-se pelo jantar de frango de churrasco e batatas fritas – enfim, já lhes cortaram a água e o gás – e aproveita o embalo do festejo para juntar uma outra celebração. Estão de partida daquela casa, vão previsivelmente para Oslo, logo depois de assassinarem o Presidente. E depois deste, havendo outros presidentes, a mãe voltará para os matar. “Porque o que mais me incomoda é o nome ‘presidente’. Vou propor-lhes ‘coordenador geral’”, justifica.

A filha está calada. A mãe pede que recordem como a pequena era dantes, “sempre alegre, linda, ambiciosa, a trabalhar naquele bar”. Um homem diz lembrar-se perfeitamente. Olha para ela: “Eras feia, com acne, bons velhos tempos.” A filha continua calada e mãe gaba-lhe o milagre da introspecção. A filha nada diz, tem uma cabeça cheia de ar. Não é que seja tonta; é simplesmente uma boneca insuflável.

Em tempos, a filha teve um corpo. Foram outros tempos da peça Oslo – Fuck them All and Everything Will Be Wonderful, escrita por Mickaël de Oliveira e co-encenada com Nuno M. Cardoso, em cena no Teatro-Estúdio Mário Viegas a partir da próxima quinta-feira, 23. Nessa altura, em 2006, quando Mickaël venceu o Prémio de Nova Dramaturgia instituído pelo Teatro Maria Matos, esta mesma peça chamava-se O que É Teu Entregou aos Mortais. Mas, apesar do prémio, o dramaturgo não se atreveu a roubar o texto à gaveta. De vez em quando voltava a trabalhá-lo, mas o destino era sempre o repouso, longe dos palcos, mesmo que periodicamente fosse lido em público. “A grande crítica que tinha em relação ao texto”, conta ao Ípsilon, “prendia-se com ser demasiado regular. Tinha um pathos, no sentido de sofrimento profundo, que achava completamente desadequado.” A solução passou então por transformar a sua ideia inicial em algo “mais irregular e monstruoso – sobretudo com um olhar grotesco e com um falso pathos associado”.

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Nuno M. Cardoso

Tudo o que havia de clássico na estrutura e no ambiente foi cuidadosamente extraído e ao fim de dez versões, alteradas, rasuradas, reescritas, emergiu aquilo a que o autor chama “uma espécie de freak show”. “A mãe vive num processo de negação, porque supostamente perdeu a filha e substituiu-a por uma boneca insuflável”, clarifica. Mais ou menos. Mickaël usa a palavra “supostamente” porque nem ele próprio parece conhecer aquela mãe que lhe saiu das mãos, interpretada por Mónica Calle, nem manifesta sequer um interesse particular em dissecar a sua própria personagem que anda por ali no palco, em carne e osso, ao contrário da sua filha ficcional que tem de ser bombeada antes de entrar em cena. A relação entre as duas é assumida como motor da peça, mas como afirmam autor e encenador, “o motor não interessa”.

O que interessa é o resumo que a mãe faz quase ao cair do pano, depois de repetir uma e outra vez que “as pessoas são uma merda”. O que interessa é a sua constatação de que não há apensos a esta encenação uma crítica sócio-política, nem um ataque ao consumo, nem uma intenção real de matar presidentes ou de chegar a Oslo. “Este espectáculo é sobre o amor que nunca irão conhecer”, afirma de forma peremptória Mónica “mãe” Calle. E como para Mickaël de Oliveira a temática amorosa cai quase sempre no patético, foi nesse terreno que decidiu investir as suas palavras. “Então vou tornar isto o mais patético possível e vou tentar violentar a representação do amor”, pensou o dramaturgo.

Family Guy ou American Dad
“Tinha acabado um relacionamento bastante profundo, aquilo bateu-me muito mal e decidimos sair daqui”, recorda Mickaël de Oliveira em relação ao período da reescrita definitiva do texto. Nuno M. Cardoso pegou-o pelo braço, pararam nalgumas outras cidades, mas foi Oslo que, nas palavras do encenador, “serviu de catarse”. Mas também o contacto acidental com a obra Mother and Child (Divided), de Damien Hirst, mãe e filha, vaca e bezerra biseccionadas, “foi impactante para escolher um pouco da imagética e do relacionamento que é esta separação – não só do outro mas de si próprio”, comenta Nuno.

Os dois tinham já trabalhado juntos, mais notadamente em Boris Yeltsin, e foram puxando por forças diferentes na definição de Oslo. “Existe uma cumplicidade entre nós”, continua Cardoso, “mas trouxemos diferentes linguagens, porque o Mickaël tem um universo muito específico e eu tenho outro bastante diferente. Gosto de me confrontar com esta visão mais cínica e aguçada, em que eu vou jogando e lançando uma perspectiva mais esperançosa.” O grotesco poderá, eventualmente, evocar o trabalho do argentino Rodrigo García, próximo do mundo dramatúrgico de Mickaël de Oliveira, mas essa sombra é recusada por ambos. “Aquelas frases, as punch lines, os slogans que gosto de usar, é o que fazem o Family Guy, o American Dad ou o South Park”, defende o autor. “Porque os desenhos animados exploram o grotesco e o óbvio, não tentam esconder nada. É um processo de apedrejamento contínuo.”

A preferência pelo grotesco sinaliza também, entre outras coisas, a recusa de ambos em tratar a mãe como um caso de demência ou de distúrbio psiquiátrico. Não é disso que se trata. É antes de uma “revolução íntima que vai acabar com a revolução política”. “Com isso”, justifica Mickaël, “a mãe atinge uma apoteose qualquer, o paraíso que é Oslo e que ela prometeu a si própria”. A mãe, ocupada quase inteiramente pela perda, pelo vazio e pela ausência, esboça e anuncia repetidamente esse plano de fuga – da casa, da vila, da sua vida, rumo a uma nova existência com ou sem uma filha que não resistirá, qual Bela Adormecida, ao fuso de uma roca. Por fim, atira rancorosa a ideia de que, tal como ela, também o público não terá direito a conhecer o amor. “Fuck them all”, diz uma vez mais.

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Nuno M. Cardoso

Não por acaso, Oslo adapta o genérico inicial falado de O Desprezo, de Jean-Luc Godard, recorre à música do filme composta por Georges Delarue até à exaustão e a citação do filme patrocina tanto o desprezo que a mãe cospe em direcção a todo o mundo quanto o tal grotesco daninho que os encenadores deixam crescer livremente entre as personagens. No chão do palco, ao lado daquela casa da qual a mãe não consegue escapar, um holofote aponta para a um outro “fuck them all”, inscrito à margem do cenário. Exacto – que se fodam as personagens. Cada uma delas.

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