Uma Medeia de bairro

Uma versão contemporânea da tragédia grega de Eurípides está em cena no Cine Teatro Constantino Nery, em Matosinhos. Veio do Brasil, mas fala com o nosso sotaque

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Muito falam as comadres em Joana, no seu desgosto, no seu perder. Jasão, o companheiro dela, 15 anos mais novo, deixou-a. Anunciou noivado com Alma, filha de Creonte, empresário da área artística, de moral duvidosa, abastado, dono da pequena urbanização onde todos moram.

Se fosse comigo dava-lhe um tiro no rabo – reage a comadre Estela.

Eu nunca fui de meter o bedelho, mas mulher como Joana não tem que se juntar com homem mais novo. O velho marido dela, manso, era homem de bem – diz Nenê.

Não fales assim, Nenê! Ela fez o que o coração ditou. Deu a Jasão dois filhos, cama e mesa, a coxa retesada, o peito erguido. Deu o que tinha de beleza, mais o que tinha de sabido, de safado, de gostoso e tesudo de mulher. Se deu dez anos de vida e o homem, satisfeito, deixa tudo como quem deixa um prato sem comida, é isso o que tens para dizer, Nenê? – defende Corina.

Medeia, a tragédia grega de Eurípides datada de 431 a.C., é uma das peças da vida da encenadora Luísa Pinto. Tem sido revisitada ao longo dos tempos. Na década de 1970, a partir de uma adaptação de Oduvaldo Viana Filho para a televisão brasileira, Chico Buarque e Paulo Pontes fizeram um musical. Já neste século, Heron Coelho adaptou-a a uma favela do Rio de Janeiro. Agora Carlos Tê transportou-a para um bairro do Porto. É essa versão, Breviário Gota d’Água, que está em cena no Cine Teatro Constantino Nery, em Matosinhos, às 21h30, até ao próximo dia 19.

O mito nunca perdeu actualidade, nota Luísa Pinto, que além da encenação assina a cenografia e os figurinos. “O preconceito contra mulheres que têm relações com homens mais novos persiste”, por mais longe que tenham chegado as influências do Maio de 1968. "A sociedade “ainda olha de lado para uma mulher que se apaixona por um homem mais novo”, como se não soubesse o seu lugar.

Não é só isso que a entusiasma na Medeia. São também as contradições do amor. Quem investe numa relação espera segurança, mas ter uma relação significa viver na incerteza permanente. A peça mostra até onde pode ir o desgosto da ruptura. “É intrigante a fronteira entre o amor e o ódio”, enfatiza Luísa Pinto. “Que amor é este que quando passa a ódio se consegue sobrepor ao amor de mãe?”

Joana, interpretada por Inês Mariana Moitas, pensa muito na morte como ponto final do sofrimento. Se ela morresse, a comadre Corina e o compadre Egeu cuidariam das suas crianças? No seu desespero, passam-lhe pela cabeça outras mortes. Isso percebe-se mal ela entra na cozinha onde preparam um caldo verde e falam sobre a vida, a vida dela. “Só há pouco, depois de tanto tempo acordados, finalmente os dois conseguiram adormecer. Depois de tanto susto, como por encanto, o rostinho deles voltou a ter não sei... Parece que de repente, no sono, encontraram novamente a inocência que estavam a perder... Olhando-os assim, sem sofrimento, imóveis, sorrindo até, quase a flutuar, fiquei a pensar: podem acordar a qualquer momento... E se eles acordam, a minha vida assim do jeito que está destrambelhada, sem pai, sem pão, casa revirada, se eles acordam, vão olhar pra mim e não vão entender... Vão perder a infância, o sonho, o sorriso. Para o resto da vida.”

 

Vizinhos da desgraça alheia

O público está muito próximo. Luísa Pinto puxa-o para dentro da peça. O espectáculo faz-se em arena. Os espectadores não são meros espectadores, assumem o lugar de figurantes. Os sofás nos quais se sentam integram o cenário. É como se fossem vizinhos a ver, com algum gosto, a desgraça alheia.

No original de Heron Coelho, as comadres lavam roupa. Na adaptação de Tê, cozinham. O caldo verde começa a ser feito no início da peça e é servido no intervalo. Quem quiser pode sair para esticar as pernas, ir à casa de banho ou fumar um cigarro, quem preferir pode ficar a comer caldo verde e a beber vinho. A encenadora quis com isso fazer “uma analogia do comungar o bem e o mal”.

Tê fez outras mudanças, para lá da adaptação do português do Brasil ao português de Portugal e da transposição da favela do Rio de Janeiro para o bairro degradado do Porto. Trocou o candomblé, uma religião descendente do animismo africano, pela feitiçaria. “A Agustina Bessa-Luís dizia que havia 300 bruxas de Valongo a Amarante”, diz ele. Introduziu essa frase no texto. “Metia-a ao barulho!”

O “malandro” deste Breviário Gota d’Água também não compõe um samba de sucesso. “No nosso meio, não podia compor um samba, não tinha sentido; podia ir à televisão, aos Ídolos, cantar um samba e ficar famoso por isso”, comenta Tê. “É uma pequena perversão. É o espirito do tempo.”

Para sublinhar que as Medeias são recorrentes na história da humanidade, Luísa Pinto quis introduzir no texto parte da sentença de uma mulher que em 2012 matou os dois filhos. Ouve-se depois das últimas palavras de Joana: “Meus filhos, meus filhos. Chegou a hora de descansar. Fiquem perto de mim, nós três, juntinhos, vamos embora para um lugar que parece ser assim: um campo macio e suave, com jogo de bola e confeitaria, circo, música, muita ave, festa de aniversário todo dia. Lá ninguém briga, ninguém espera, ninguém empurra ninguém, meus amores. Não chove nunca, é sempre Primavera. A gente deita-se num beliche de flores mas não dorme, fica a olhar as estrelas. Ninguém fica sozinho, lá não dói, lá ninguém vai embora, as janelas estão cheias de gente dizendo olá, lá não há susto, anda tudo devagar E a gente fica só a apanhar sol, há sempre um cheirinho a éter no ar, a infância perpetuada em formol.”

Inês Mariana Moitas chega ao fim de cada representação extenuada. “É uma história brutal. Uma pessoa vê a notícia de que uma mãe matou os filhos e pensa: como é possível? Parece sempre impensável, mas acontece mesmo.” Não do nada, como parece nas notícias curtas. No turbilhão concreto de cada vida. A peça mostra como tudo se vai construindo no caso de Joana – o companheiro que a abandona, o empresário que a expulsa da casa que ela já pagou, os amigos/vizinhos que deixam de a defender, a vingança que falha. “Claro que não é desculpável, mas é levar ao extremo a fragilidade de uma mulher que deu tudo e perdeu tudo”, diz Inês. “É muito humano.”

 

 

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