Uma história de fantasmas

O filme de Pedro Costa é feito de uma matéria que não se deixa organizar como narrativa, na medida em que é uma construção da memória.

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A força imensa de Ventura está no modo como abre abismos com as suas palavras ou com a simples presença

Com a sua fixidez espectral, Ventura olha-nos tanto quanto nós o olhamos a ele: Cavalo Dinheiro é uma história de fantasmas porque a memória é, digamos assim, o órgão de modalização do real de que o filme é feito. E a memória, como sabemos desde os gregos, não é possível sem uma imagem, um phantasma.

Conhecemos Ventura de outras aparições: ele já foi – não por esta ordem e acumulando, às vezes, várias destas condições - um espírito elementar, um sobrevivente de uma história política e social, na qual fez parte de um numeroso contingente de trabalhadores que, enquanto cidadãos, não passaram de supranumerários, um recitante – como os antigos aedos – de um património a transmitir, um deus pagão no exílio. Ele foi, finalmente, uma figura completamente imanente a uma ideia e a uma forma cinematográficas onde estão em jogo a ética e a política do cinema de Pedro Costa.

Agora, Ventura regressa como um juíz soberano para o juízo final, que o leva a recapitular o passado e a concentrá-lo numa grandiosa abreviatura, como é a cena quase final, em que vai num elevador do hospital com um soldado do MFA (que surge ali, imobilizado e como um espectro). E aí repete frases do tempo da revolução e rememora, numa espécie de ladainha, esse passado que, para ele, foi traumático. Por esse exercício de rememoração, que preside aliás a todo o filme, dá-se um actualidade integral do passado, isto é, uma convergência do passado com o presente, rompe-se o continuum da história e deixa de haver uma relação puramente temporal (no sentido do tempo cronológico, do tempo dos relógios e dos calendários) entre os acontecimentos. O tempo do Ventura é um tempo descontínuo, não é um tempo narrativo. Ele poderia mesmo dizer, com alguma verosimilhança: “Uma narrativa? Não, nada de narrativas, nunca mais”. A memória de Ventura realiza a operação fundamental de todo o cinema: a montagem. E a montagem, como sabemos, implica a repetição e a interrupção.

Não estaremos à altura deste poderoso filme de Pedro Costa se não percebermos o mecanismo da interrupção e da suspensão próprios da memória. E se não soubermos que rememorar é transformar o real em possível e o possível em real. É o que faz Ventura, colocando o espectador numa zona de indiferença: entre o presente e o passado, entre a realidade e as fantasmagorias. Ao contrário de uma concepção hoje dominante que consiste em comparar o cinema à prosa narrativa, a rememoração que introduz a descontinuidade e procede à montagem está mais próxima da poesia do que da prosa. Não se trata daquela afectação que muitas vezes é ingenuamente identificada com a poesia, mas da interrupção de um fluxo, da suspensão da continuidade, de tal modo que a imagem e o sentido são subtraídos ao poder narrativo. O carácter enigmático de Ventura está precisamente no facto de não ser uma peça de uma narrativa. Ele não é um meio – um medium, como são geralmente as personagens de um filme – para dar a ver outra coisa. Absolutamente exposto, ele deixa mesmo aparecer algo que é sem imagem, mas que é o refúgio de toda a imagem. Dito de outra maneira: Ventura é modelado por um resto que obriga a colocar a questão do irrepresentável. E o seu discurso, as palavras e as frases que profere, têm um poder que não é o da comunicação nem o da pragmática. Vêm de outra esfera, não são pragmáticas nem comunicativas, têm um efeito que consiste em des-criar o real, des-criar o que existe. Em suma: têm uma profunda qualidade idiomática. Nem sempre sabemos o seu significado e não podem ser apropriadas por mais ninguém. A força imensa de Ventura – e, como é lógico, do filme de Pedro Costa, já que eles estão um para o outro numa relação de total imanência – está no modo como abre abismos com as suas palavras ou com a simples presença.

O seu exercício de rememoração é uma espécie de história da salvação. Ele ajusta contas com o passado trazendo-o para o presente e com a atitude de quem acha que se pode ainda apropriar dele, redimi-lo, salvá-lo. Estamos aqui muito próximos da ideia de um tempo messiânico, onde se interrompeu o tempo cronológico da história e cada instante é dotado de uma actualidade integral e universal, é ao mesmo tempo passado, presente e futuro. Pela rememoração, Ventura apodera-se do passado que lhe coube em herança e age sobre o presente. A memória restitui ao passado toda a sua possibilidade.

É evidente que tudo isto tem uma enorme carga política. Desde logo, a história do Ventura cruza-se com a história do país desde o 25 de Abril. Mas o modo como ele evoca esta história não coincide com nenhuma “narrativa” reconhecível no espectro político-ideológico que nos envolve. Descobrimos, neste filme, com Ventura, que há uma outra história por contar. Há a história dos vencedores, há a história dos vencidos, mas há ainda a história dos que nem sequer faziam parte dos termos desta dialéctica. Ventura pertence a esta terceira categoria. Um filme convencional, feito da mesma matéria histórica, política e sociológica, faria dele um herói dessa história por contar e assumiria, em maior ou menor grau, uma intenção historiográfica. Mas Cavalo Dinheiro é outra coisa completamente diferente e muito mais radical: nada de historiografia, nem sequer de narrativa (histórica ou outra). O seu gesto ético e político reside precisamente nesta recusa da lógica narrativa em favor da rememoração analógica. Assim, Ventura não se deixa categorizar e abre um espaço político que é imanente ao próprio filme. Por outro lado, nada do que diz respeito à estreita relação entre o cinema e a história lhe é estranho. Mas actualiza essa relação de uma maneira que coloca o filme noutra órbita É a isto que se chama pensar politicamente o cinema.

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