Uma exposição tímida

O novo olhar sobre a colecção de Serralves vale sobretudo pela revelação das obras no espaço.

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A instalação da argentina Amalia Pica — pena que a exposição tenha sido indiferente aos artistas portugueses mais recentes FILIPE BRAGA/FUNDAÇÃO DE SERRALVES

Conceber uma exposição a partir de uma colecção presume, desejavelmente, a existência de um ponto de vista construído sobre uma sensibilidade e um conhecimento e a definição de preceitos e orientações.

Em Histórias, exposição que propõe uma nova reflexão sobre a colecção de Serralves “e a criação artística no século XXI”, é justo dizer que existe um ponto de vista, um olhar que arranca as obras do seu esconderijo para as dar a ver. A narrativa, conceito delicado para a arte contemporânea, é o que sustém e projecta esse olhar, o tópico geral que permite à curadora explorar um conjunto de sentidos: a narrativa enquanto história pessoal, relato da vida real, enredo ficcional, facto histórico ou encenação. 

Não é a primeira vez, nem será a última, que a curadoria de uma exposição trabalha as diferentes acepções de um conceito para ler uma colecção ou toma a narrativa como ponto de partida dessa leitura. Diga-se desde já que, em termos de estratégias expositivas, Histórias é uma exposição prudente. Não ensaia diálogos complexos, arriscados, separa as obras por suportes ou linguagens (pintura, fotografia, performance, filme, fotografia) e, amiúde, força associações. O que a torna, ainda assim, uma exposição interessante? Duas coisas: as obras, recentemente integradas na colecção ou que, pertencentes a colecções privadas, poderão vir a fazer parte do acervo de Serralves; e a disposição das obras no espaço. É portanto dessa relação simples (entre obras e espaço) que Histórias se constrói.

Visite-se a galeria inferior do museu onde a presença solitária das cores e dos materiais oferece ao espectador um percepção livre e directa das escalas das esculturas, bem como das tensões que se criam entre o corpo do espectador e as obras ou entre as próprias obras. A escolha da sala revelou-se particularmente feliz, pois a luz natural descobre as texturas, as imagens e as histórias de cada trabalho, isto é, as suas diferenças. Permite, por exemplo, confrontar as preocupações de Dahn Vo com a “pesquisa” de Leonor Antunes em torno da arquitectura modernista; a história individual e colectiva com a história da arquitectura, o peso do cobre com a ductilidade do couro. No piso de cima, numa das salas principais, a proposta da artista argentina Amalia Pica (que em 2013 expôs na Kunsthalle Lissabon) também se afirma no espaço por meio das peças geométricas (de acrílico) que constituem a sua instalação: uma sintaxe de cores que, regularmente, um grupo de perfomers vem activar, criando novas combinações e justaposições. 

Nas paredes da sala contígua, a “interacção” cessa com uma série de pinturas. Trata-se de um momento solene e controverso na exposição. Se a inclusão inteligente de uma obra de Albuquerque Mendes (Catálogo) e a revelação de uma artista como a inglesa Lynette Yiadom-Boaky (com uma pintura admirável e violenta) merecem ser aplaudidas, a aparição tímida dos artistas portugueses podia ser objecto de reparo. Certamente que ao lado de Wilhelm Sasnal, Nedko Solakov, Tala Madani e Luc Tuymans seria possível imaginar outros nomes que não Paula Rego. Ou será a pintura portuguesa das últimas décadas tão avessa a qualquer significação da “narrativa”? Na sala dedicada à fotografia, evidencia-se um diálogo frutuoso e intrigante: a ideia de aproximar a série Fim, de Paulo Nozolino, da série Waiters, de Jorge Molder, permite ao espectador meditar sobre as distâncias que separam os modos de fazer e os universos dos dois artistas. A peça mais espectacular aguarda os visitantes numa sala escura: trata-se de Letter to a “Refusing Pilot (2013), do artista libanês Akram Zaatari. É uma obra oportuna (pelo contexto a que alude) e pungente (pelas imagens e as narrativas que a organizam), mas o aparato que exige retira-lhe a eficácia e a urgência. Nada que fira a sua importância como proposta inédita no circuito expositivo nacional. Aliás, Histórias é significativa exactamente como exposição que mostra peças nunca ou pouco vistas. Só é pena que esse olhar tenha sido indiferente à produção dos artistas portugueses revelados nas duas últimas décadas: não tiveram lugar nesta narrativa.

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