FKA Twigs, uma experiência para além da música

Não é preciso ser vidente, ouvindo a sua pop futurista e percebendo o imaginário visual singular, que um concerto da sua autoria nunca seria qualquer coisa de vulgar. E assim foi, em Londres.

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Na semana passada regressou aos palcos de Londres, para dois espectáculos especiais há muito esgotados, no espaço Roundhouse, na zona de Camden PAULA HARROWING
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PAULA HARROWING

Em Agosto, quando lançou o álbum de estreia e a entrevistámos, dizia-nos que ainda tinha de pedir dinheiro emprestado aos familiares para se aguentar ao final do mês.

Meio ano depois, Tahliah Barnett, 27 anos, verdadeiro nome de FKA Twigs, já não deverá ter razões de queixa. O álbum LP1 foi aclamado como um dos melhores de 2014 e o mercado americano acolheu-a de braços abertos, tendo completado recentemente uma digressão sempre com datas esgotadas. Em Junho será cabeça-de-cartaz do Primavera Sound do Porto.

Não é uma celebridade. Longe disso. Como dizia há dois meses ao The Guardian: “agrado às pessoas que desejam algo de diferente, mas o mundo, em geral, não quer saber de coisas diferentes”. O mundo é um lugar muito estranho e Twigs descobriu que ainda faz parte de um nicho pelas piores razões.

Há meses soube-se que tinha uma relação amorosa com o actor Robert Pattinson – ele, sim, celebridade da cultura de massas – e ela provou o sabor amargo do racismo, sendo diabolizada pelas admiradoras do actor através da internet.

Ela é tímida. Aparecer em revistas cor-de-rosa era a última das ambições. Mas foi isso que aconteceu. No espaço de poucos meses, a vida da rapariga que antes de rumar a Londres cresceu no verde da Inglaterra rural, sofreu uma grande reviravolta.

Na semana passada, depois de meses de ausência, regressou aos palcos de Londres, para dois espectáculos especiais há muito esgotados, no espaço Roundhouse, na zona de Camden.

Não é preciso ser vidente, ouvindo a sua pop futurista e percebendo o imaginário visual singular, que um concerto da sua autoria nunca seria qualquer coisa de vulgar. E assim foi.

Mais do que um concerto é uma experiência de dança imersiva, ou uma performance artística hipnótica. Os temas sucedem-se uns aos outros de forma contínua ao longo de duas horas, sendo o palco ocupado por oito bailarinos e quatro músicos, em teclas, efeitos electrónicos, bateria, percussões e por vezes guitarra. De vez em quando surgem também duas violinistas.

O preto, o branco e o vermelho são as cores predominantes, com as luzes a instituírem sempre um ambiente misterioso. É como se o imaginário de muitos dos seus vídeos – as formas fluídas pós-humanas, a sensualidade disforme, o erotismo negro a linha por vezes ténue que separa prazer da dor – fosse transportada para o palco através de gestos teatrais, voz sensual, baixos subsónicos e batidas lentas e claustrofóbicas.  

Não surpreende que seja assim. A dança é uma paixão antiga. Na infância, em casa, a mãe, uma antiga professora de dança, cantava com ela ao som de Billie Holiday. Aos 17 anos rumou a Londres para estudar diversos estilos de dança – do ballet clássico à dança hip-hop – e no passado recente foi uma das bailarinas profissionais mais solicitadas para entrar em videoclipes. Para ela, a dança e a imagem não são dissociáveis da música. Fazem parte da mesma totalidade artística. Não é por acaso que ela assina a realização de alguns dos seus vídeos.

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Em Agosto do ano passado, dizia-nos: “as canções, os vídeos, os concertos, enfim, até a roupa que visto, acabam por fazer parte do mesmo corpo de trabalho. Faço questão de investir toda a minha energia em tudo o que faço, seja lá o que for.”

O espectáculo começou com uma violinista em palco, com uma luz ténue a incidir sobre si, envolta no negro do cenário, criando de imediato um clima com qualquer coisa de austero, mas também de perturbador. Depois entrou a cantora, com um sensual body de couro e botas de cano alto, como se fosse uma dominadora vindo do futuro, fazendo ecoar de imediato uma sua voz soberana que é também capaz do sussurro sensorial.

Em Vídeo girl vemo-la no interior de uma jaula feita de lasers vermelhos, com os bailarinos à sua volta, em aparente atitude hostil. Aliás na maior parte dos quadros o binómio dominação-submissão está sempre presente, numa viagem pelos meandros mais sinistros da sexualidade, que culmina em Papi pacify numa simulação de sexo com um dos musculados bailarinos.

É um espectáculo minucioso e rigoroso, mas na verdade está sempre à beira do descontrolo, com a música tribalista a instituir bastante espaço por entre os gestos coreográficos. Em Give up existe uma piscadela de olho à Madonna de Vogue, com ela e um dos seus bailarinos a ensaiarem passos de dança estilizados que remetem para a dança do mesmo nome, popularizada nos clubes gay de Nova Iorque nos anos 1980.  

Para quem vai à procura de um concerto convencional as hipóteses de desilusão são inúmeras. Na maior parte do tempo ela entrega-se, sozinha ou em grupo, a uma performance acrobática, com os corpos em convulsão, sendo a voz, as palavras e a música integradas na mesma arquitectura cénica.

Também não tem a pretensão de ser um espectáculo de dança moderna. Não é isso. É um objecto artístico híbrido, concretizado com consistência, que revela toda a sua visão.

Se em termos de definição da sua imagem o encontro com o artista canadiano Jesse Kanda foi determinante (ver os vídeos para as canções de Water me e Papi pacify), já musicalmente a influência do venezuelano Arca sente-se de forma evidente.

O efeito do jovem músico e produtor, que tem sido falado nos últimos meses por causa dos seus lançamentos a solo e pela colaboração com Björk no álbum desta, sente-se ainda mais ao vivo. O som metalizado, compassado e abrasivo é uma constante em palco, numa mistura palpável de ruído e texturas.

As canções são reconhecíveis, mas na maior parte das vezes soam bastante diferentes do disco, ou porque contêm alguns elementos novos, ou porque raramente são apresentadas na totalidade, entrecortadas por diversos fragmentos sónicos.  

Por vezes imagina-se uma Grace Jones futurista. Noutras uns Massive Attack glaciais. Outras ainda, Björk sem nunca explodir. A opção é mesmo essa. Deixar o mistério no ar. Criar um ambiente de tensão. O público exulta. Envolve-se. Mas não se chega a perceber se está rendido ou simplesmente intrigado.

As percussões são industriais e as linhas de baixo densas, mas a voz suspende os sentidos e respira quase sempre delicadeza. Os olhos grandes dão-lhe um ar de desenho animado e nos passos de dança parece quase uma marioneta, mas existe qualquer coisa de humanamente vulnerável em tudo o que propõe.

Ela canta, compõe, produz, dança, teatraliza, imagina imagens e realiza videoclipes. É alguém que se pensa a si própria como um somatório de ideias, um conceito, uma personagem.

O espectáculo termina com Two weeks, com Twigs, lânguida e intimista, olhando para a multidão como se fosse uma só pessoa, apresentando os seus bailarinos e músicos, dirigindo-se pela primeira vez ao público que a aplaude ruidosamente.

Acaba por ser um momento de estranheza. Durante duas horas todos testemunharam uma experiência fascinante e irreal, dominados por uma voz pós-humana e agora ali está ela, tímida, estranhamente humanizada, finalmente saindo da sua personagem, lançando com voz embargada: “hello London!”. 

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