Grouper: uma experiência iluminada por Aljezur

Gravado numa casa perto de Aljezur, no Sul de Portugal, o novo álbum da americana Liz Harris, ou seja Grouper, é uma obra imensa.

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Jason Bokros
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Sérgio Hydalgo
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A entrevista estava marcada para esta semana, mas à última hora a americana Liz Harris, mais conhecida por Grouper, pediu para ser cancelada. Não fomos os únicos. O jornal inglês The Guardian também viu o seu desejo adiado. Ela diz-se inquieta. Está a viver o lançamento do novo álbum de forma intensa.

Não surpreende. Percebe-se que Ruins, gravado em 2011, perto de Aljezur, no Sul de Portugal, resultante de uma residência artística da galeria Zé dos Bois e da amizade com o seu programador musical Sérgio Hydalgo, é um disco íntimo.

É uma obra indissociável do espaço e do tempo onde foi registado e a própria tem feito questão de o salientar. É um daqueles objectos onde por vezes no sentimos intrusos, feito de uma música intensa que ilumina a tristeza, com espaço, delicadeza e sabedoria, com duas mãos acariciando levemente um piano, enquanto uma voz parece remoer consigo própria.

Ouve-se chuva a cair em Holifernes e as rãs fazem sentir a sua presença em vários temas. Pressentem-se passeios pela praia e pelos campos, enquanto ela vai conjugando palavras como “I hear you calling and i wanna go / Run straight into the valleys of your arms” (Holding), ou “I have a presence to give you / When we finally figure it out” (“Call across the rooms”).
E no entanto este não é álbum de exteriores. Parece ter sido feito para não sair do quarto onde foi gravado. Lá, em Aljezur.

Ao longo de dez anos e de tantos outros discos, Liz Harris foi trabalhando composições melancólicas com influências do ambientalismo ou da música concreta, sempre com a preocupação de expor uma sonoridade simples e desnudada. 
Mas nunca tinha ido tão longe como agora, numa obra admirável atravessada por muitos fantasmas. Dissolução das relações amorosas. Descrença no amor romantizado. Solidão. Um amontoado de ruínas emocionais – “maybe you were right when you said i’d never been in love”, canta em Clearing.

Ruínas também no cenário de degradação de algumas casas rurais. No colapso do sistema financeiro. Ou na crise de Portugal, com a sua residência artística a ser colocada em risco pelos cortes orçamentais de que a galeria Zé dos Bois foi alvo, acabando por gravar numa casa de Sérgio Hydalgo. Destroços do planeta espelhados nos conflitos interiores de Liz Harris.

A rodeá-la apenas agricultores e velhos montes danificados. Compunha durante o dia, com intervalos para ir à praia, tirar fotos ou gravar sons da natureza. De vez em quando dirigia-se à povoação para se abastecer no mercado. Em casa apenas três CDs deixados por Sérgio: Carlos Paredes, Nina Simone e Cohen. “Apaixonei-me por Carlos Paredes”, disse à publicação Fact.

Ao contrário de outros discos, esculpidos com guitarra e reverberações, neste abandonou-se à fazedura de canções artesanais para piano e voz, alternadas por alguns instrumentais, com destaque para o épico final Made of air.
É um álbum de canções tristes, mas tristes de quem não teme a inquietação, disponibilizando-se para lhe apreender os contornos, para melhor a superar ou ser reparada com calma.

Em momentos catárticos assim podemos escudar-nos defensivamente em sentimentos sombrios circulares, ou então, sem recusar a melancolia, transformá-la em qualquer coisa palpável, orgânica e com horizonte. Liz Harris conseguiu-o.

A sua primeira vez em Portugal foi em 2007, tendo regressado em mais do que uma ocasião, sempre com a Galeria ZDB na mira. “Fiz ali verdadeiros amigos”, afirmou recentemente.

“São humanos e investem o coração em tudo o que fazem. A residência artística aconteceu depois do seu orçamento ter sido afectado pela crise económica, mas mesmo assim trabalharam no duro para que a ideia fosse avante e não se desperdiçasse. Acabou por ser uma das mais saudáveis e criativas experiências de toda a minha vida. Estou-lhes eternamente agradecida.”

O seu álbum de 2008, Dragging A Dead Deer Up A Hill, colocou-a no mapa de artistas a acompanhar. O ano passado com The Man Who Died In His Boat, a sua voz desenhava um quadro que se sobrepunha de forma perfeita à componente instrumental. Dir-se-ia que aí trabalhava a matéria dos sonhos.

Agora é igual e radicalmente diferente, criando canções para piano e voz que captam as atmosferas em seu redor, numa ondulação nostálgica que tanto remete para William Basinski como para Julia Holter ou Julianna Barwick, combinação de notas mínimas e ruídos discretos que se sobrepõem, originando uma tranquilidade quase fúnebre e a uma enorme comoção.

Em 1983 a britânica Virginia Astley editou o álbum From Gardens Where We Feel Secure, obra de culto, onde os sinos da aldeia se ouviam, o burro zurrava, as cigarras cantavam e o piano serpenteava em círculos. É um álbum mais leve que o de Grouper, que expõe uma gravidade cerimonial, mas são dois grandes exemplos de música generosa, capaz de captar esse imenso rumor, interior e exterior, da experiência humana.

Música indissociável do quotidiano, dos afectos, das histórias que a vida tece. A partir de agora Grouper, ou seja Liz Harris, haverá de ficar para sempre associada àquela casa, naquele tempo, em Aljezur. E nós, transportados por ela, também.

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