Wolfgang Tillmans, uma ética da observação

O que interessa a Wolfgang Tillmans é um certo modo de actuar no mundo que é simultaneamente instrumento de acção e lugar de contemplação.

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As fotografias do mar são momentos impressionantes dessa beleza redentora que está no trabalho de Tillmans Fernando Veludo/NFACTOS

Wolfgang Tillmans (1968, Remscheid, Alemanha) fez vestidos, cantou numa banda, desenhou e pintou, mas foram as imagens tecnológicas que mais o fascinaram. Não se tratou, como conta, de ficar agarrado pela fotografia, mas sim pelas imensas possibilidades plásticas contidas pelas máquinas de fazer imagem. A primeira descoberta foram as fotocopiadoras (a  possibilidade de ampliação até 400%, a textura, os diferentes tons de negro, a indistinção entre realismo e abstracção, etc.) e só depois a fotografia com o seu potencials analógico e digital. Mas tanto num caso como no outro o que interessou — e interessa — a Tillmans é um certo modo de actuar no mundo que é simultaneamente instrumento de acção e lugar de contemplação.

Estes dois níveis coexistem de um modo notável em todas as suas obras. Por um lado as suas imagens revelam a cultura underground dos anos de 1980 e 1990, a música acid house, a discriminação racial, sexual, a SIDA e o HIV, a construção de identidades minoritárias e diferentes, tudo como se a fotografia fosse um campo de batalha e Tillmans um combatente empenhado. Por outro, a beleza impõe-se e torna-se motivo de contemplação e de uma espécie de saída do mundo que nos aflige. As suas fotografias do mar, as paisagens e as naturezas mortas são momentos impressionantes dessa beleza redentora. E é este duplo movimento que mais fortemente caracteriza o trabalho de Tillmans não como um paradoxo, mas como tensão imagética.

A sua dinâmica criativa faz-se através da junção indeterminada e intensa de recortes de jornais, citações, apontamentos visuais sobre a tecnologia, fotografias estudadas e preparadas como se Tillmans fosse um pintor de cenas históricas, imagens de ocasião e auto-retratos em que o artista — desassombradamente — se expõe como coisa do mundo. Elementos estes pertencentes a registos tão diferenciados como o documental, o biográfico, mas unidos através uma mesma imaginação estética. Dada esta tão diferenciada genealogia e fisiologia das imagens de Tillmans, não se pode falar de fotografia, no sentido mais ortodoxo desta prática artística, mas de imagens na sua caracterização mais indistinta e lata. Tudo se passa como cada imagem fosse um fragmento da vida de um mundo que o artista cria em cada exposição e as imagens instrumentos para fazer face ao presente e lidar com a actualidade.

Na exposição de Serralves, e apesar da concentração em grandes, imponentes e impressionantes imagens sobre o mar, as nuvens e o horizonte, estão presentes todas as tensões que tão fortemente caracterizam o trabalho de Tillmans. A um primeiro olhar parece ser uma exposição sem as marcas do activismo, da denúncia e da política que se associa sempre a este artista alemão, mas a um olhar mais atento percebe-se ser uma exposição sobre os limites: os limites das imagens em termos da sua composição, os limites da tecnologia, mas também os limites da visão humana não só enquanto órgão sensitivo, mas enquanto acção moral, cultural, política. Por isso é que, num certo sentido, esta é uma exposição acerca do alcance da visão humana e das suas (nossas) possibilidades perceptivas. É neste contexto que surgem as imagens fotocopiadas mais antigas, mas também trabalhos sobre os telescópios e as tecnologias da imagem e um importante fragmento de Lampedusa (2008) assumido como reflexão sobre as fronteiras e todos os interditos que nos rodeiam, mas também como forma de vincular esta exposição ao presente, aos refugiados e às fronteiras europeias como lugar de morte.

E são estas as linhas que constroem esta exposição, aliás como todas as que Tillmans faz. Nunca se trata de séries de imagens ou antologias cronológicas, mas pensar cada exposição como momento para onde são convocados diferentes tempos, corpos, vozes, cores. Muitas vezes repete imagens, outras são só elementos novos. O interessante é perceber que as exposições constituem para o artista um importante momento compositivo: são o seu laboratório.

Mas qualquer que seja o tema que Tillmans toma em mãos para as suas exposições — ou os livros: que ocupam um papel importante no seu trabalho — caracteriza-o uma forte ética da observação e um compromisso moral com os objectos das suas imagens. Ele não está num plano destacado ou à parte das cenas que constrói, mas ele é um elemento, igual a todos os outros, do todo que surge nas salas onde expõe, implicado nesse mundo dado a ver pela junção de imagens. E esta ética artística é uma parte incontornável da imensa beleza de que o trabalho de Tillmans é um lugar destacado.

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