Uma dança macabra para acordar zombies

Entre a performance, a dança, o vídeo e o concerto, The Weather™ é Mariana Tengner Barros a levar à cena uma sátira à alienação mediática.

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ANTÓNIO MV

Durante uma parte considerável de The Weather™, Mariana Tengner Barros dança num transe total enquanto o duo musical psicadélico Jesus K & the sicksicksicks vai desenhando uma torrente sonora pontuada por arabescos que agitam o corpo da bailarina e coreógrafa e o mantêm num rodopio imparável. Essa “viagem xamânica” torna-se tão intensa que Mariana chega a ter acessos de vómito, de tal forma se obriga a desaguar nesses territórios de alteração da percepção da realidade. A ideia é a da fuga: para se escapar da alienação pelos media que crê anestesiar a sociedade em seu redor, procura uma outra forma de alienação, pedindo boleia a Kali, deusa hindu da criação e da destruição.

E essa alienação mediática que Mariana Tengner Barros tentará fintar no Negócio, Bairro Alto lisboeta, entre 25 e 27 de Fevereiro, está por todo o lado no palco, com projecções constantes, e por vezes simultâneas, das suas próprias recriações (feitas com o bailarino Luís Guerra) de um universo televisivo de concursos de talentos, reality-shows, noticiários e adivinhações meteorológicas para dentro do qual, acredita, mais de metade da população portuguesa é sugada todas as noites depois de terminadas as obrigações laborais.

Há um ano, quando começou a arquitectar este espectáculo-sátira que tem tanto de concerto quanto de performance e coreografia, Mariana queria partir de um caricatural talk-show com banda residente: um dueto com Luís Guerra, em que o bailarino participaria de modo virtual, brincando com “os arquétipos da televisão americana e a forma como os media, principalmente a televisão, manipulam a mente das pessoas”. Luís Guerra, projectado num ecrã, disputaria a atenção e a verdade com Mariana em carne e osso.

Aos poucos, The Weather™ ganhou vida própria, tornou-se menos talk-show e mais um turbilhão de elementos que sugerem, a cada segundo, a dispersão da atenção a que a contemporaneidade obriga – perfeita, considera a criadora, “para não se explorar nada em profundidade”.

E à medida que a peça avança, os duetos avançam uns atrás dos outros, entre real e virtual, entre Mariana e Elizabete Francisca – enquanto duas subdivisões de Kali –, entre a dança e a música, entre os intérpretes e o público (desafiado a abandonar o seu confortável e passivo assento na sala e a juntar-se a esta descontrolada espiral de referências), entre criação e destruição, entre tentativas de encontrar novos modelos de percepção da realidade e a rendição completa diante dos já conhecidos.

Recusando qualquer missão moralista, The Weather™ explica-se também pela realidade de Mariana estar “mais próxima de uma imagem lynchiana do que de uma telenovela”. “Os filmes de David Lynch e Kenneth Anger fazem-me entender melhor o sítio onde estamos do que uma coisa supostamente realista”, explica. “Isto é mesmo só um espelho daquilo que vejo, levado a um exagero quase mórbido e macabro”. Uma dança mórbida e macabra que pisca o olho às séries de zombies na TV, como se, em mais uma sarcástica mirada no espelho, se tratasse apenas de zombies a assistir a zombies.

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