Uma arte contrariada

Jacques Rancière propõe o cinema como arte do regime estético — para lá de Hollywood

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Fritz Lang rodando Cidade nas Trevas: diz Rancière que o cineasta antecipa neste filme o declínio do cinema como espectáculo

A antologia de textos Uma Fábula Cinematográfica, de Jacques Rancière, pede ao leitor um conhecimento razoável ou o visionamento recente dos filmes analisados, o que pressupõe o acesso às obras ou, mesmo, a sua posse. A importância destas condições é denunciada, numa revelação discreta e, talvez até, redundante (se se excluir o que a motivou), pois a atenção que Rancière concentra nos filmes — descrevendo-os minuciosamente, suspendendo imagens, “reconstituindo” planos — só poderia resultar de um estudo controlado e exemplar das obras. O fim da tarefa, que chama a si os textos, é reforçado no prólogo: pensar o lugar do cinema no âmbito do regime estético da arte, aquele em que tudo se converte em arte. Que cinema? Todo o cinema, mas sobretudo o cinema que recuperou os enredos, as histórias, as personagens da lógica representativa: o cinema de Hollywood ou, pelo menos, certo cinema de Hollywood. Eis um dos objetos privilegiados deste livro, mas apenas enquanto (mais uma) forma desse regime estético que dispensa e supera as dicotomias arte/entretenimento ou cinema estético/cinema clássico ou narrativo. O cinema é uma arte, sim, mas, sublinha Rancière, contrariada. Contrariada pelos ditames da indústria e que contraria o seu próprio poder natural, “primitivo”: o de registar as coisas tal como surgem ao ser, no estado de ondas e vibrações, o de registar a verdade da vida.

São os intervalos, os contramovimentos, os jogos desse “combate” que o autor descobre em Tartufo (1925), de Murnau, O Tesouro de Barba Ruiva (1955) e Cidade nas Trevas (1956), de Fritz Lang, Os Filhos da Noite (1949), de Nicholas Ray, ou Esporas de Aço (1956), de Anthony Mann. Rancière, todavia, não parece um cinéfilo tradicional, o seu amor pelo cinema de Hollywood surge, também ele, contrariado, suscita dúvidas. O interesse que manifesta pelas formas, pelas encenações, pelas singularidades avança a par de um desapreço aparente pelos enredos, pelas personagens, pelas histórias. Não vê os filmes “na companhia do realizador” (como Stanley Cavell); o seu ponto de vista é cimeiro, para descompor e separar as imagens, para as comparar com o texto teatral ou literário, ou para as ver na co-presença de outras imagens. Redigidos em períodos distintos, os textos obedeceram a solicitações diversas; não há coerência que os unifique para além dos conceitos principais. Se, na análise de Tartufo, Rancière conclui que a singularidade cinematográfica (o expressionismo das sombras) é sacrificada à adaptação da obra de Molière, em O plano ausente: poética de Nicholas Ray, dedicado a Os Filhos da Noite, elogia a composição e a subtracção das imagens, ou seja, o cinema como arte do nascimento e do luto das imagens. Este é o artigo mais bonito de A Fábula Cinematográfica, aquele que se autonomiza do filme, sem contudo dele se apartar, que acolhe quem nunca viu o filme de Nicholas Ray.

Os textos sobre o cinema de Lang trilham outros caminhos. Em O realizador-criança, o que Rancière procura são as lógicas narrativas, a relação do próprio cineasta com O Tesouro de Barba Ruiva. É Fritz Lang, o artista contrariado de Hollywood, avesso a ingenuidades e lirismos, que orquestra as palavras e as expressões do jovem herói, John Mohune. É, enfim, o que está entre a obra e a consciência que o artista tem da sua acção, bem como da maquinaria de Hollywood, que garante ao filme a pertença ao regime estético, mesmo se a expensas do encantamento. Rancière é um autor que leva longe as suas analogias (Mohune é também Lang, sugere) ou análises, como se constata no ensaio dedicado a Cidade nas Trevas. Neste filme, o penúltimo de Lang nos EUA, entende que o cineasta austríaco antecipa já o declínio do cinema, enquanto espectáculo, em favor da imagem-que-sabe, a da televisão, a que no fim “cerca” e captura o criminoso. Proposta audaz mas estimulante, que convida a um novo reencontro com o filme.

A capacidade analítica do autor prolonga-se em Algumas coisas por fazer: poética de Anthony Mann e em A queda dos corpos”: física de Rossellini. Estes ensaios, ondes pululam títulos e descrições, testemunham uma experiência continuada, laboriosa, dos filmes e, no interior dessa experiência, um debate familiar. Pois é ainda com a legitimação artística do cinema, com a sua proximidade suspeita e envergonhada com o entretenimento, com a indústria cultural, que Rancière se confronta. Não há um desenlace definitivo desse confronto. Ou o autor encontra algo que excede e subverte essa relação (por exemplo, nos gestos do protagonistas dos westerns singulares” de Mann) ou deixa-nos discretamente a sós com interrogações, como a que remata A loucura de Eisenstein. Vale muito a pena lê-la. É comum e intrigante. 

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