Um serão que luz: visita breve ao século XVII

Sara Mingardo encantou com a sua voz suavemente encorpada e melodicamente fluida, mas apresentou-se de forma defensiva no ataque das notas agudas e na energia interpretativa dispensada.

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Sara Mingardo Luís Duarte
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Sara Mingardo, com Giorgio dal Monte no cravo e o alaudista Ivano Zanenghi na tiorba Luís Duarte

O século XVII legou-nos música maravilhosa. Alguma dela pôde ser escutada em Queluz, através do recital apresentado pela famosa contralto Sara Mingardo, com Giorgio dal Monte no cravo e o alaudista Ivano Zanenghi na tiorba; um recital integrado no ciclo Noites de Queluz, que decorre até final do mês.

Os compositores representados, todos italianos, incluíam alguns com carreira iniciada no último quartel do século XVI — Alessandro Piccinini e Claudio Monteverdi — mas através de peças justamente escolhidas nas suas publicações seiscentistas. Isto não foi uma opção estritamente cronológica, pois o estilo praticado pelos artistas mais avançados mudou claramente na passagem do século.

Na sequência de uma transformação de vulto na relação entre texto e música, que passou a guiar-se pela primeira, e em simultâneo com o crescente protagonismo secular dos cantores profissionais, surgiu o stile rappresentativo, um recitativo dramático associado ao nascimento da ópera; e a síntese de informalidade, imaginação e formalização operada por Monteverdi, poucos anos passados, reinventaria o pensamento musical aplicado à voz. O mesmo tipo de liberdade imaginativa na expansão do espaço e da textura sonoras surgiria, na música para tecla, através de Girolamo Frescobaldi, também representado no programa.

Ao mesmo tempo, a canção acompanhada, aqui representada por duas villanelle de Andrea Falconieri (1616), ganharia foros de cidade, ainda que em meados do século a cantata dramática se tenha tornado em Itália o principal género de música vocal de câmara.

De tudo isto nos falava, inteligentemente concebido, o recital. A centralidade do texto na inspiração artística dos compositores da primeira metade do século XVII recomendaria que no respectivo programa impresso constassem os textos cantados e respectivas traduções em português, o que infelizmente não sucedeu. Ainda assim, o público que encheu a sala pôde apreciar a força da música então criada.

Sara Mingardo encantou com a sua voz suavemente encorpada e melodicamente fluida, mas apresentou-se de forma defensiva no ataque das notas agudas e na energia interpretativa dispensada. Nos Lamentos de Monteverdi e Carissimi, como nas Cantatas de Salvatore e Strozzi, esperar-se-iam tempos mais contrastados e maior intensidade dramática; mas o resultado manteve-se num nível muito elevado de facilidade técnica e adequação expressiva. O acompanhamento ao cravo ou à tiorba foi correcto e contido; nas peças instrumentais a solo, Zanenghi executou a Toccata XX de Piccinini de forma limpa, quase escolar, mas já Dal Monte, no polo oposto, se mostrou demasiado caprichoso na Toccata Seconda de Frescobaldi, oscilando entre o repetido entrecortar e a precipitação do tempo musical.

Os aplausos não faltaram, porém, vindo o público a ganhar, como encore, uma agradável canzonetta em estilo clássico, de Paisiello.

 

 

 

 

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