Um Quebra-Nozes que é sobretudo um quebra-cabeças

O bailarino e coreógrafo Fernando Duarte e o encenador André e. Teodósio recriam para a Companhia Nacional de Bailado o clássico Quebra-Nozes e carregam-no de excessos. Uma estreia para um Natal pouco tradicional.

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Há um cartaz com o slogan “Amor é <3 [código de Facebook para desenhar um coração]”. Há bailarinos a tirar selfies. Há um soldado cor-de-rosa na selva. Há uma Minnie cruzada com a Wonder Woman. Há uma câmara de filmar apontada a um fundo de chroma verde que transporta um dueto para o Padrão dos Descobrimentos. Há uma nazarena com cereja no topo assim se transformando num exemplar da pastelaria nacional chamado pirâmide. Há em Quebra Nozes Quebra Nozes uma explosão de marcas, um emblema da paz que roda até se transformar no logótipo da Mercedes, uma invasão de ratos contra o exército de gengibre que nos chega pelo filtro da Disney e uma profusão notável de doçaria adulterada com mensagens a prestarem-se à decifração – a embalagem de chocolate grafada como After Eighteen, por exemplo.

Esta noite de Natal, momento em que arranca o Quebra-Nozes original, o bailado com música de Tchaikovsky inspirado no conto O Quebra-Nozes e o Rei dos Ratos, de Hoffmann, começa como um avolumar de referências desconcertante, de acordo com a criação coreografada por Fernando Duarte, com dramaturgia de André e. Teodósio e cenografia e figurinos de João Pedro Vale e Nuno Alexandre Ferreira, a estrear sexta-feira pela Companhia Nacional de Bailado, no Teatro Camões – onde fica até 20 de Dezembro. Se o Quebra-Nozes se tornou obrigatório no Natal, também a Disney, as marcas e os doces colonizaram a quadra.

Quebra Nozes Quebra Nozes é um quebra-cabeças. Não apenas porque os seus sentidos não chegam ao palco triturados, mastigados e prontos a engolir, mas também porque, segundo o coreógrafo Fernando Duarte, André e. Teodósio “traz sempre ideias que criam interrogações, surpresa e novidade”, especialmente salientes na abordagem a um clássico. “Espero bem que seja um quebra-cabeças”, responde Teodósio ao PÚBLICO. “O que tentei fazer com o espectáculo foi, de alguma forma, funcionar como um antropólogo, ver várias versões da peça, perceber como se inscrevia historicamente, qual o seu percurso, quais as figuras de estilo utilizadas para maximizar a valorização dos binómios mundo velho/mundo novo, infância/idade adulta, belo/feio, fantasia/realidade.” Mas nestas parelhas, que de alguma forma dançam também no palco, Teodósio não quer realçar antagonismos e oposições, antes uma coexistência em que nenhum dos lados se pode colocar em bicos dos pés (essa parte fica para os bailarinos). Tal como ratos e gengibres que, de arma em riste e preparados para a batalha, logo se desinteressam do embate.

Depois de, em Maio, Fernando Duarte ter recriado (em colaboração com o cineasta Edgar Pêra) um outro clássico com partitura de Tchaikovsky, o “deus dos deuses” Lago dos Cisnes, como lhe chama o coreógrafo, aborda agora um Quebra-Nozes que interpretou em três versões diferentes como bailarino e viu num sem-número de outras produções. Uma peça do reportório que lhe está entranhada desde que começou a dançá-la em criança ao som de um disco de vinil e que considera “ser uma certeza absoluta para qualquer bailarino de uma companhia de reportório misto – tal como os impostos o são para um cidadão”. Coreografando dentro de uma linguagem muito clássica – “que se tornou intemporal e mais entusiasmante porque hoje em dia os bailarinos são melhores performers”, diz –, Duarte quis sobretudo responder com movimento às ideias levadas por um encenador que, convocando uma série de personagens de produções anteriores e juntando mais um par de novidades, não se quis afastar muito da narrativa original. O certo é que nesta passagem ao palco nada conversadora, Teodósio garante não ter procurado chocar. Mas apenas na mesma medida em que também não procurou consolar.

Iniciais QN
Estimulado pela conclusão de que o próprio Quebra-Nozes buscara a sua identidade na viagem transatlântica da Europa (onde fora mal recebido) para os Estados Unidos (onde se transformou num espectáculo-chave) e pela conversão da emancipação da mulher numa emancipação do género, André e. Teodósio fundou a sua visão sobre a identidade cruzando-a com a ideia de perda. “O espectáculo é sempre sobre perder, perder, perder. E quando digo que também é sobre a identidade não é para chegar a ela, pelo contrário, é para sair de ideias pré-definidas e alcançar sítios abertos e infinitos.”

Por isso mesmo, vinca a identificação do acrónimo comum (QN) em Quebra-Nozes e Queer Nation – movimento responsável, na década de 90, por uma revolução nas questões de identidade sexual nos Estados Unidos. A questão, para Teodósio, não se prende tanto com a sexualidade, mas com a abolição de categorias de género – a teoria queer defende que são meras construções sociais – e uma deserção do antropocentrismo. A perda de que fala é, assim, também a recusa de identidades pré-formatadas. Da mesma forma que, em relação ao movimento, André e. Teodósio gostaria que este chegasse sem qualquer conceito atrelado. Que pudesse, afinal, valer por si. Até porque embora saiba que a primeira parte de QNQN está saturada de metáforas e que os simbolismos estão prontos a ser colhidos, quando os bailarinos-ratos da Disney entram em palco, para ele são apenas isso – bailarinos vestidos como ratos dos filmes da Disney.

À medida que o espectáculo avança e a teatralização cede cada vez mais espaço à dança, o cenário vai perdendo a deflagração de cores inicial e dá lugar a uma representação de todos os elementos anteriores, desenhados num telão que apresenta um daqueles jogos com pontinhos numerados que têm de ser ligados com um lápis, e em que as cores estão todas por definir. “A identidade é uma coisa muito complexa”, atira Teodósio. Cada um que saiba como preencher a sua.

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