Um presidente da República que cita Baudelaire

O VI Encontro de Escritores de Língua Portuguesa terminou com uma homenagem a Arménio Vieira, prémio Camões de 2009.

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O Presidente cabo-verdiano, Jorge Carlos Fonseca, ele próprio poeta SEYLLOU/AFP

Uma densa e comunicante lição de Jorge Carlos Fonseca sobre a poesia de Arménio Vieira, o poeta cabo-verdiano que recebeu em 2009 o prémio Camões, encerrou esta quarta-feira, na Cidade da Praia, o VI Encontro de Escritores de Língua Portuguesa, organizado pela União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa (UCCLA).

“Que sorte!”, suspirava no final o músico, actor e realizador micaelense Zeca Medeiros. Não se referia tanto ao prazer que tivera em ouvir a palestra, mas à sorte dos cabo-verdianos por terem um Presidente da República que cita desenvoltamente Baudelaire ou René Char, e que numa intervenção da qual seria razoável esperar-se apenas o elogio mais ou menos enfático e burocrático do homenageado disse dele coisas tão estranhas como esta: “É muito provavelmente um conhecedor profundo de todos os infernos, o de Dante, o de Rimbaud, o de Strindberg e o dele próprio, Arménio Vieira."

O poeta de MITOgrafias (2006) ou de Derivações do Brumário (2013) – que se encontrava em Lisboa e não esteve presente – já fora competentemente apresentado numa primeira intervenção da escritora Ondina Ferreira, o que tornava ainda menos previsível a meia hora que se seguiu, na qual Jorge Carlos Fonseca, ele próprio poeta, inventariou também o vastíssimo universo de leituras que constitui um dos nutrientes da “sofisticada poesia” de Arménio Vieira. “A Bíblia, Schopenhauer, Shakespeare, Char, Blake, Claudel, Hölderlin, Heidegger, Camões, Pessoa e todos os seus heterónimos, Neruda, Pound, Hegel, Whitman, Jimenez, Goethe, os surrealistas quase todos, Sartre, Borges…” –, enumerou o orador, numa amálgama propositadamente caótica de poetas e filósofos das mais diversas épocas e línguas.

E citou os versos iniciais de uma arte poética em que o próprio Vieira, glosando e desviando-se de Pessoa, reconhece as dívidas da sua lírica aos autores que leu: “O poeta é um fingidor/ um pedreiro muito lido,/ calceteiro dolorido/ cujas pedras são pedaços/ que ele arranca dos penhascos/ de uma alma nua e sua/ e da alma de outros poetas”.

Comparando-o, na extensão e na variedade de leituras, a outro grande poeta cabo-verdiano, o mindelense João Vário (1937-2007), Fonseca defendeu que Arménio Vieira merece esse dístico que T. S. Eliot atribuiu a Ezra Pound: “il miglior fabbro”.

Da poesia à música

Antes da sessão de encerramento, que terminou com o ministro da Cultura, Mário Lúcio, a fazer votos de que estes encontros regressem a Cabo Verde, a manhã fora dedicada a debater as ligações entre a poesia e a música, num país em que os cantores e instrumentistas conseguem ser ainda mais do que os poetas, quando não são os mesmos, o que também acontece com frequência.

O escritor português José Luís Peixoto começou por ler um poema seu, explicando que o escrevera justamente na Cidade da Praia, onde viveu durante um ano. Mais tarde publicado no seu primeiro livro de poemas, A Criança em Ruínas (2001), com o título Arte Poética, abre com estes versos: “o poema não tem mais que o som do seu sentido,/ a letra p não é a primeira letra da palavra poema,/ o poema é esculpido de sentidos e essa é a sua forma,/ poema não se lê poema, lê-se pão ou flor, lê-se erva fresca e os teus lábios (…)”.

Numa intervenção em que evocou a sua adolescência no Alentejo, quando tocava simultaneamente saxofone numa banda filarmónica e guitarra eléctrica num grupo punk, Peixoto lembrou que a ligação entre poesia e música remonta aos primeiros textos poéticos conhecidos, escritos na Suméria há quatro mil anos, e sublinhou que “a literatura é uma actividade humana em todas as suas vertentes: é feita por humanos, destina-se a humanos e utiliza matérias absolutamente humanas – a língua e a linguagem”. E “também são profundamente humanas as formas de medir o tempo em literatura”, acrescentou: “o bater do coração, como um metrónomo permanente e implícito; o fôlego, como um compasso quaternário que nos mantém vivos”.

O sociólogo, escritor, pintor e fotógrafo cabo-verdiano Abraão Vicente começou por enunciar uma possibilidade: “Pode ser que sim, a música ser toda a literatura e o contrário também." E acrescentou que “tudo passa pela música em Cabo Verde” para reconhecer que “este pode ser um slogan manhoso para explicar a cabo-verdianidade, desde o primeiro som das palmas dos pés pisando a negra areia da Cidade Velha, às sonâncias do chicote na costa do negro no vale da Ribeira Grande de Santiago”.

E depois arrancou para um extenso texto, lido a cem à hora, no qual evocou largas dezenas de poetas e músicos cabo-verdianos, e que terminou com um vaticínio: “Continuaremos a receber  os novos sons, da kizomba, do semba ao sertanejo brasileiro, mas é no funaná, coladeira, no colá san djon, na morna e no talaia baixo que o povo das ilhas continuará a recriar sua essência." É nestes ritmos, concluiu, “que toda a literatura feita música e toda a música na literatura cabo-verdiana continuarão a ser uma linha única alimentando-se da mesma fonte: o destino e a jornada do homem cabo-verdiano”.

O poeta e diseur português José Fanha falaria depois do papel fundamental desempenhado pela Casa dos Estudantes do Império, em Lisboa, que se “tornou durante os anos 50 no ninho onde germinaram as ideias que deram origem aos movimentos de libertação de Angola, Moçambique, Guiné-Bissau e Cabo Verde e num local onde se consolidaram parte das elites destes países, nomeadamente muitos dos seus poetas e romancistas”.

Fanha confessaria depois a sua admiração pelo modo como os cabo-verdianos conseguem transformar não apenas em canções, mas em música para dançar, poemas de fortíssima dimensão política ou versos que falam do flagelo das secas.

Zeca Medeiros, que na parte destinada às perguntas iria depois entusiasmar a assistência cantando Zeca Afonso, dispensou qualquer abordagem mais teórica do tópico em discussão pela leitura de uma crónica pessoal, espécie de carta de amor dum açoriano a Cabo Verde, que intitulou Insulano será meu fado, e na qual irmanou Antero de Quental e uma cantora cabo-verdiana que viveu em S. Miguel, Djutta Ben-David. “Sob a âncora da esperança os seus olhos claros irão espelhar todas as feridas do mundo. Um tiro. Dois tiros. ‘Silêncio escuridão e nada mais’. Mas agora que o sol vem celebrar o mar eterno na voz luminosa de D. Djutta Ben-David, vou fundear meu violão, minha galera, vou estender o meu cansaço nas areias brancas desta praia”.

A poeta e ensaísta angolana Ana Paula Tavares começou por pôr o público a ouvir o Poema da Farra, de Mário António (1934-1989), cantado por Rui Mingas, que se apropria de personagens do romance Jubiabá, de Jorge Amado: “Quando li Jubiabá/ me cri Antônio Balduíno/ Meu primo, que nunca o leu,/ Ficou Zeca Camarão”.

Explicando que o poema foi escrito em 1952 e publicado pouco depois, a ensaísta notou que o poema tem sido bastante estudado, mas quase sempre como exemplo “da enorme influência que o escritor baiano teve nas várias literaturas de língua portuguesa”. Mas a intenção de Mário António, sublinhou Ana Paula Tavares, “não era dizer ao mundo que tinha lido Jorge Amado”, mas integrar as personagens de Jubiabá na cidade de Luanda, que “nesse exacto momento”, diz, “era uma cidade conflituada, onde cada vez mais a cidade branca se afastava das areais babélicas do musseque”.

O poeta angolano “recupera esses anti-heróis, esses seres invisíveis que o colonialismo queria esconder, esses homens da margem, que uma noite, por causa de uma farra, vão atravessar toda a cidade e de certa maneira apossar-se de uma Luanda da qual tinham sido desapropriados pelo sistema colonial”. Um sistema que “apresentava uma cidade luso-tropicalista onde toda a gente vivia muito bem, com a toalha branca, o garrafão de vinho e o pastel de bacalhau”.

A ensaísta usou ainda o exemplo deste Poema da Farra para mostrar como o custo que o autor paga por se ver imortalizado na música é o da sua própria rasura. “Hoje ninguém sabe quem foi Mário António, mas o Poema da Farra continua vivo e, de certa forma, a música eterniza tudo aquilo que o quotidiano apaga."

E se os encontros terminaram formalmente à tarde, tiveram um notável epílogo nocturno no Espaço Kaku, um bar ao ar livre da Cidade da Praia, numa farra animada pelo guitarrista Kaku Alves e companhia, incluindo uma cantora extraordinária (Zeca Medeiros dixit) chamada Sónia Évora, e pelos escritores convidados, que leram poemas de cor e de improviso. 

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