Um português na terra do flamenco

No Conservatório Profissional de António Ruiz Soler, em Sevilha, o único bailarino português, de 24 anos, aprende flamenco e estreia-se na sua coreografia. Todos os passos de João Pereira vão dar a esta dança que "vive do cante, da guitarra e dos músicos" e hoje seduz especialmente os japoneses.

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ANTON MERES/REUTERS
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Numa sala soalheira do conservatório, os alunos do quarto ano de flamenco preparam-se para a aula de dança. Cabelos apanhados, sapatos de baile calçados, castanholas nas mãos. Em frente ao espelho, que cobre uma das paredes, revêem exercícios de aulas anteriores. Quando começa, a professora entoa um “tarriarriapitá”, onomatopeia que só eles entendem e que imediatamente reproduzem em uníssono. Na roda há um rapaz, o único da turma, o português que há três anos se mudou para Sevilha.

João Pereira recorda o dia em que chegou pela primeira vez ao Conservatório Profissional de Dança António Ruiz Soler, um edifício de fachada branca e amarela, para a audição. “Estava supernervoso, especialmente para as provas de dança clássica e dança espanhola, em que não estava confiante. Foi mesmo sofrer até ao fim.”

João foi apurado, mas até superar esta prova já tinha percorrido um longo caminho. Neto de sevilhanos, primo de antigos campeões de sevilhanas, desde sempre passou férias na cidade andaluza, espicaçando a vontade de dançar. Acabou por aprender de forma insólita com a ajuda da tia que vivia em Espanha. “Quando ela começou a ter aulas, pedi-lhe para me ensinar. Então, por telefone, ela ia-me dizendo os passos e eu fazia desenhos.”

Quando se inscreveu numa escola de dança em Almada, já sabia as sevilhanas, mas “faltava a técnica”. Tinha 13 anos. A partir daí as férias de Verão em Sevilha serviam também para fazer cursos. Embora afirme que “a idade importa”, também reconhece que no flamenco “muitas vezes faz falta maturidade ao bailarino”. E é com este espírito que vai construindo uma carreira que espera longa. “Obviamente, se tivesse começado com oito anos, teria sido melhor. Mas foi quando tinha de ser. Tenho que fazer o meu caminho, sabendo onde e quando comecei.”

No dia da audição, João conheceu Mercedes Asuero, de 22 anos, que cresceu a dançar na escola onde a mãe dava aulas. A bailarina espanhola com quem partilha turma no conservatório mostra-se orgulhosa do interesse de estrangeiros pela cultura flamenca: “O interesse do João pelo flamenco é maior do que o de alguns espanhóis. Enquanto povo, não apreciamos o que temos e parece que precisamos do reconhecimento dos outros.”

O bailarino português licenciou-se, entretanto, em Engenharia Zootécnica pelo Instituto Superior de Agronomia da Universidade de Lisboa e concluiu um mestrado em Produção Animal. Durante o primeiro ano de mestrado participou no programa Erasmus em Córdoba, uma cidade estrategicamente escolhida, pois “era a única hipótese de estudar flamenco”. Num ano fez as disciplinas dos dois do mestrado e teve aulas de flamenco na Asociacíon Cultural Nosolo Danza. “Foi uma loucura. Mas percebi que não conseguia voltar a Portugal.”

A agitação deste ano de intercâmbio foi semelhante à rotina que tem hoje. Chega ao Conservatório às 8h30 e tem seis horas de aulas. “Depois costumo ficar até às 16h a ensaiar por minha conta”, diz. Seguem-se aulas noutras escolas privadas, normalmente até às 21h. Quando há ensaio da companhia, significa mais duas horas e meia de trabalho antes de ir para casa.

Numa tarde com cheiro a Primavera, depois de mais uma aula, João atravessa as ruas de Sevilha, sob o sol já quente de Abril, a passo apressado até à casa que partilha com outros quatro estudantes. É ainda preciso fazer compras, preparar o almoço, passar a ferro as camisas para o espectáculo da noite e chegar ao ponto de encontro à hora marcada.

Em 2015, fez uma audição para o espectáculo En Homenagen a Camarón, da companhia José Galván. Foi um dos seleccionados e tornou-se o primeiro bailarino português a ingressar numa companhia de flamenco em Espanha. Já este ano estreou o espectáculo Guajiro, no Teatro CajaSol, em Sevilha. “Foi superemocionante dançar num teatro emblemático de Sevilha, sabendo que estavam imensos nomes do flamenco a assistir”, recorda, orgulhoso. A forma entusiasmada como descreve as sensações desse dia repete-se quando refere a decisão de mudar de país, “uma etapa muito importante”, e também quando relata a primeira vez que dançou num tablao, o equivalente a um café dançante, em Sevilha.

Afazeres cumpridos, as camisas estão impecavelmente engomadas. À noite, a companhia apresenta Guajiro no palco da Casa de la Cultura de Sanlucar la Mayor, uma pequena localidade perto de Sevilha. Depois de acomodadas todas as malas que transportam volumosos vestidos de folhos e as guitarras, num processo engenhoso em que o espaço das bagageiras é aproveitado ao milímetro, músicos e bailarinos seguem, animados, até ao teatro.

No corpo de baile formado maioritariamente por jovens espanhóis, também há um chileno. Malena Alba, de 22 anos, bailarina da Cía. Flamenca José Galván, reconhece que a convivência entre bailarinos de várias nacionalidades é gratificante e traz “a possibilidade de integrar no movimento de cada um formas de expressão de outros”. Relativamente a João Pereira, destaca o esforço, afición e vontade de se superar diariamente.

Chegados ao local, é tempo de definir as luzes, estudar as posições e movimentações de cada um e de afinar as guitarras. Às 21h30 começa o espectáculo.

Um estilo de vida

Leonor Caballos, professora de Flamenco, Teoria de Canto e Guitarra no Conservatório António Ruiz Soler, explica que o flamenco é originário de zonas específicas da Andaluzia, “cada uma com a sua personalidade e identidade”. No entanto, beneficiando de “um grande poder de atracção e absorção de todos os elementos culturais, musicais e artísticos com que conviveu durante o seu desenvolvimento”, conseguiu ultrapassar as barreiras físicas do país onde nasceu. O processo de universalização desta arte coincide com a sua profissionalização e ascensão aos palcos. A professora adianta que, actualmente, fora do território espanhol, é no Japão que o flamenco encontra mais aficionados.

João descreve-se como um rapaz envergonhado que encontrou neste estilo uma forma de expressão. “É uma dança extremamente sensual, com muita garra, força, expressão e técnica. Eu sou tímido, mas consigo expressar-me no flamenco.”

Embora não goste de fazer planos a longo prazo, até porque a insegurança económica e a falta de apoios não deixam muito espaço para programar o amanhã, uma coisa é certa: nos próximos três anos manter-se-á em Sevilha para terminar o curso profissional no conservatório. Relativamente ao futuro, não esconde a vontade de permanecer em Espanha, estando sempre vinculado a Portugal, profissional e emocionalmente. Foi precisamente lá que no final do ano passado se estreou no papel de coreógrafo, levando a palco o espectáculo Sentir Flamenco. Quer fomentar o espírito do flamenco em terras lusas, onde, na sua opinião, ainda há muito por fazer para afirmar este género de dança.

“Sinceramente, tenho pena, porque geograficamente Portugal é o país mais próximo de Espanha, mas de um modo geral não se encontra o nível presente noutros países, como Israel, Rússia e EUA, em que o flamenco está muito desenvolvido”, diz. Aponta também a falta de músicos como um aspecto negativo do meio: “O flamenco original vive do cante, da guitarra, dos músicos e, em Portugal, há muita falta disso. É necessária mais informação sobre o flamenco, porque se tornou moda, popularizou-se.”

O jovem bailarino chama a atenção para a importância de distinguir sevilhanas e flamenco. “Ainda se confundem muito, mas as sevilhanas são uma expressão do folclore andaluz, enquanto o flamenco nasce da junção de várias culturas, embora tenha tido maior ênfase na zona de Andaluzia.” Formado a partir de elementos judaicos, arábes, ciganos e mouriscos, o flamenco foi declarado Património Cultural Imaterial da Humanidade, pela UNESCO, em 2010.

Em Portugal, Rute Sá Lopes e Sofia Abraços são bailarinas reconhecidas no meio como nomes representativos da arte. Desde o início de 2000 que conciliam a carreira pessoal com a vertente de ensino, dirigindo aulas de flamenco e de sevilhanas em diversas academias. As duas bailarinas orientam cerca de 150 alunos, repartidos por diversos níveis e faixas etárias.

Rute Sá Lopes, professora na Dance Spot, em Lisboa, e na Academia de Dança Paula Manso, em Alverca, foi uma das primeiras mestras de João. Elogia o percurso do jovem numa disciplina com poucos rapazes. Dos mais de 100 alunos que contabiliza, apenas seis são do sexo masculino. Em sua opinião, “esta discrepância ainda é muito cultural, não ao nível dos familiares, mas entre os próprios colegas”. Já na perspectiva de Sofia Abraços, o baixo número de rapazes a dançar flamenco em Portugal poderá estar relacionado com a “inexistência da figura de um professor masculino”. 

Professora na ProDança, em Lisboa, e no Ateneu Artístico Vilafranquense, defende que, apesar de “a moda” em Portugal já ter passado, o flamenco continua vivo e em evolução. Observando que a maioria dos alunos procura nas aulas uma forma de praticar exercício físico através da dança, Sofia Abraços constata que apenas uma minoria deseja “aprender as regras e a linguagem do flamenco”.

O lugar que João conquistou no seu país de origem, num mercado relativamente pequeno, espera também alcançar em Espanha. “Existem sítios em que me começam a conhecer, mas há muitos outros em que ninguém faz ideia de quem sou. Faz parte de um processo: a pessoa vai aparecendo, vai conhecendo...”, diz o bailarino.  

Um processo que se faz todos os dias, até por entre as ruas de Sevilha. “Estou constantemente a pensar no flamenco, a fazer sons com as mãos e com os pés, enquanto associo tempos e contratempos.” Um caminho que, no seu desfecho mais desejado, o levará a dançar no Ballet Andaluz ou no Ballet Nacional de Espanha. Mas isso – antevê – “é um voo muito alto...”

Editado por Lurdes Ferreira

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