Um passado confuso

Patrick Modiano volta a indagar a identidade de uma personagem melancólica e enigmática através de um “inquérito íntimo”

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Patrick Modiano continua a indagar o escuro e o sombrio THOMAS SAMSON/AFP

No seu mais recente romance, o francês Patrick Modiano (n. 1945) — Prémio Nobel de Literatura 2014 — continua, como faz em todos os livros, a indagar o obscuro e o sombrio, a procurar aquela espécie de “luz incerta das origens”, esse espaço onde tudo vacila algures num passado complexo que por vezes parece nunca ter existido. EmPara Que Não Te Percas no Bairro, um escritor sexagenário, Jean Daragane, que praticamente já não escreve e que lê sempre o mesmo livro, vive sozinho. “Há três meses que não via ninguém e não passava mal por isso”, o telefone deixara de tocar, mas um dia recebe uma chamada de um desconhecido, Gilles Ottolini, dizendo que encontrara a sua agenda (perdida havia um mês no bar de uma estação de comboios) e que fazia questão de lha entregar pessoalmente. Contrariado, Daragane aceita encontrar-se com ele, dada a sua “insistência de insecto”. No encontro, Gilles, acompanhado pela jovem e enigmática Chantal, confessa a razão de persistir em que o encontro fosse pessoal: encontrara na agenda o nome de um tal Guy Torstel — nome de que o escritor não se lembrava mas que aparecia mencionado num romance que escrevera havia décadas. Passado menos de um dia, esse nome provoca no sexagenário o “acordar de um brusco adormecimento”. É como “uma picada de insecto, a princípio muito leve, e eis que ela provoca uma dor cada vez mais forte, e em breve uma sensação de rasgão. O presente e o passado confundem-se, e isso parece natural visto que só estavam separados por uma espécie de celofane.”

Paris dos anos 50 e 60: uma rapariga de nome Chantal, rostos de homens misteriosos, episódios breves, uma viagem de carro, a mãe, os amigos da mãe, um assassinato, encontros singulares numa casa situada algures. Tudo isto começa a vir ao de cima na enigmática memória do confuso passado de Jean Daragane. Chegam de um tempo longínquo, dos anos da sua infância, provocando-lhe uma espécie de vertigem. O escritor entra numa espiral de onde já não consegue sair. Daragane espera assim encontrar pontos de referência — datas, nomes, locais — que lhe permitam iluminar aquilo a que Patrick Modiano, num outro romance, O Horizonte (Porto Editora, 2012), comparou à “matéria escura” do Universo. A personagem mergulha devagar na memória, como se olhasse uma “velha fotografia descoberta por acaso” num qualquer baú, lembra amizades equívocas, sombras envoltas por um certo ar de ilegitimidade, o que as leva a tentarem refugiar-se umas nas outras. Tudo isto rodeado por personagens, silenciosas e misteriosas, vindas de um passado que se assemelha ao presente e que actuam como se vivessem sempre uma espécie de vida paralela, em que cada acto ou movimento é mais um ponto para a ténue teia que se vai desenhando diante do leitor, de tão frágil e necessitada de cuidados. Jean Daragane tenta preservar a todo o custo a solidão em que vivera os últimos anos, ao mesmo tempo que se vai revelando numa espécie de “inquérito íntimo” em registo melancólico: “Nessa solidão, nunca se sentira tão descontraído, com curiosos momentos de exaltação de manhã ou à noite, como se tudo fosse ainda possível, e como se, como no título de um velho filme, a aventura estivesse ali, ao virar da esquina.”

Mais uma vez, como em todos os livros de Modiano, a geografia de Paris é enumerada com uma minúcia quase obsessiva: nomes de ruas, praças, cafés, pequenos hotéis, estações de metro e de comboio, parques surgem envoltos numa tristeza melancólica evocada pela nostalgia que atravessa devagar toda a narração. É a errância lenta da personagem em busca de um tempo perdido, e na esperança de entender também uma parte do mistério que são todos os passados.

Numa escrita elegantemente atravessada por velados jogos de sombras, de coisas meio ditas, de frases enigmáticas, a deambulação das personagens em busca de uma identidade perdida algures num tempo antigo, na cartografia da Paris etérea, vai deixando no leitor uma sensação dolorosa de vazio, de solidão e de desenraizamento. Como uma partida do destino, de laços quebrados e de uma inesperada e obscura ausência.

Correndo o risco de parecer que está sempre a escrever o mesmo livro, em Para Que Não Te Percas no Bairro Modiano consegue arquitectar a história de maneira a prender até ao fim a atenção e o interesse do leitor (como se para isso não bastasse já a sua escrita apurada), embora deixe transparecer algumas “coincidências” bastante forçadas na acção.

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