Um oceano de barcos, homens e álcool

Em Le Grand Marin Catherine Poulain poupa nas palavras, estende as histórias silenciosas como os quilómetros de redes de pesca que tem de reparar. Ela conta o oceano, os barcos e a inextinguível solidão dos homens.

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Catherine Poulain, hoje pastora e viticultora, antiga vagabunda e sem-abrigo FOTO: Geoffroy MATHIEU/Opale/Leemage/Éditions de L’olivier

Às vezes, todos sentimos aquela ânsia de partir em busca do algures e do absoluto. Ela surge, e temos todo o resto da vida para a empreender ou para a calar. Alguns permanecem; outros ousam seguir esse novo caminho, evadem-se, por vezes encontram-se, por vezes perdem-se. A radicalidade da busca da narradora, Lili, e a via insensata que escolheu para por fim se sentir viva, o confronto inédito desse pequeno pedaço de mulher com os elementos marítimos desenfreados, fornecem toda a força a esta narrativa. Le Grand Marin é a história de uma mulher-criança que parte para pescar no Alasca, contra ventos e marés, contra tudo e todos, e ignorando todos os avisos, todas as precauções, enfrentando o perigo, o esgotamento, a fúria das ondas, o cansaço esmagador, a fome, o frio, o sangue e o sal, as feridas e o contacto com os rudes marinheiros, esses homens silenciosos com olhos ardentes e a alma esfrangalhada.

No início do romance, angustiamo-nos com a ideia de ter de ler 400 páginas de histórias de pesca, mas tudo aqui nos surpreende. Desde logo é um primeiro romance (e como acontece em muitos romances de estreia, o autor tem tendência para colocar demasiado, fazer demasiado, dizer demasiado. Cabe ao leitor julgar se a obra merecia que o seu editor tivesse efectuado alguns cortes ou se, pelo contrário, certas repetições ou lentidão acabam por ajudar a melhorar a percepção da vida dos marinheiros face às estações e aos caprichos do mar). Um primeiro romance escrito por uma mulher que ninguém conhecia nem esperava: Catherine Poulain, hoje pastora e viticultora no Sul de França, antiga vagabunda e sem-abrigo, trabalhadora sazonal, pescadora, numa vida de viagens e de biscates muito exigentes a nível físico, cara sulcada de rugas magnificamente esculpidas pelo sal, pelo sol e pelo suor. Do nada, como uma borrasca, engoliu o mundo literário, uma combustão espontânea, uma aparição, uma escritora nata.

O estilo é surpreendentemente desfasado em relação ao tema do romance: muito diálogo e conciso, quase no limite do lapidar. Palavras, onomatopeias, frases curtas de criança que se maravilha com uma região no fim do Mundo devastada pelo álcool, pela pobreza e pelas esperanças ainda não desfeitas daqueles pobres desgraçados. Tudo parece digno de interesse à mulher-criança Lili, tudo é fonte de divertimento ou de observação: o seu olhar veste de alegre ingenuidade o quotidiano mais sórdido. Uma narrativa poética, mas, no entanto, Lili é uma guerreira disposta a tudo para alcançar o seu sonho de pesca radical, no Alasca, do bacalhau, do caranguejo e do linguado. Se o leitor for muito sensível, deverá reprimir algum soluço de horror e de repugnância perante as detalhadas descrições de sujidade (dos corpos, dos lugares), de cheiro (do peixe, das vísceras, do suor, do combustível e de outros produtos). Mas Lili diverte-se. Por vezes revolta-se quando se encontra no âmago da pesca e no meio dos homens com os olhos brilhantes com uma loucura mortífera, e que, sem parar, durante horas matam milhares de peixes, num banho de sangue e de tripas ainda a palpitar. Ela revolta-se, mas imediatamente depois engole os corações dos peixes, pois após tantas horas tem fome, ou as ovas arrancadas às entranhas dos animais que estremecem. A mulher-criança regressa ao estado selvagem.

Ela tem de superar os obstáculos, encontrar o seu lugar a bordo do barco, que a contratou à experiência e que de início lhe reservou as tarefas mais subalternas e mais aborrecidas. Mal a deixam dormir no chão num canto do barco, enquanto os homens têm beliches. Esgotamento, sofrimento, frio, humidade: Lili enfrenta a aspereza da sua vida, ligada a um fio de pesca. Embriaga-se com os sons do mar, os estalos do barco e os seus roncos, as tosses e os escarros viscosos dos homens.

Le Grand Marin desvenda os recursos físicos inesperados que Lili, e talvez cada um de nós, tem dentro de si. É uma ode à superação, à resistência, à insensibilidade dos nossos corpos disformes de citadinos modernos. O livro coloca claramente a questão do lugar de uma mulher num universo exclusivamente masculino e da relação de força física entre a mulher e o homem. Lili acaba por impressionar os seus companheiros e atiça a curiosidade, tanto no mar como em terra, de todos os rapazes rudes da zona. Ela cruza o caminho de algumas mulheres, e todas elas tiveram que fazer mais do que todos os outros para alcançarem a posição onde se encontram. Nada é impossível para as mulheres-crianças que desejam, a qualquer preço, que os seus sonhos se concretizem.

De seguida ficamos surpreendidos porque Lili parece ignorar totalmente a questão do desejo masculino. Ela não vê nada, ou finge não se aperceber de nada. Ela simplesmente não fala sobre isso. Mesmo assim, sendo a única mulher no meio de homens muitas vezes solteiros, quer seja no alto-mar ou em terra, nos bares onde se embebedam por pouco dinheiro, ela deve atiçar o desejo. Ela deve ser cobiçada. Lili prefere escrever sobre a dimensão carnal do oceano, os seus movimentos lentos ou os seus acessos de violência, uma sensualidade sublimada. É preciso esperar até metade do livro para que o assunto surja. Mas quais as relações entre a mulher e o homem quando tudo é regido por regras estritas que asseguram a sobrevivência da tripulação? Quando a promiscuidade proíbe tudo? Quando os próprios marinheiros estão amarrados por uma veemente misoginia, a sua maneira de proteger ciosamente o seu perímetro variável de liberdade, “porque eles têm medo que lhes roubem o seu barco, que elas se apropriem dele, que elas queiram revolucionar tudo, lixar a ordem – a deles – e evitar as merdas deles (…) sempre estas cenas de poder, as cóleras deles, os rancores deles, as contas que eles têm de ajustar com a raça dos homens, todas essas merdices que não têm lugar a bordo. Consegues imaginar?”.

Acabará Lili por se tornar num deles, à força de sofrimentos desumanos e de esforços sobre-humanos? Aqueles homens tão duros, tão dilacerados interiormente pelos seus demónios escondidos, o seu álcool e a sua loucura, que tanto admiram Lili, paradoxalmente, não param de querer remetê-la ao seu suposto papel de dona de casa e mãe dos seus filhos. Muito deles estão loucos por ela, sem que ela o deseje ou faça algo para isso, uma espécie de “Billy Budd, O Marinheiro” [de Melville] em versão feminina. Até que o “Grande Marinheiro”, Jude, homem selvagem e que aterroriza o barco, acaba por agitar a criança para despertar a mulher vibrante e desejável.

Lili tem de fazer uma outra escolha dolorosa: amar este homem, este grande marinheiro, segui-lo para não o perder, e renunciar à sua liberdade?; ou continuar no seu caminho, a sua busca, abandonando assim o seu amor inesperado e ardente? Que mulher, prisioneira num quotidiano de amargura, não sentiu já essa picada: “E se nunca o tivesse encontrado? E se tivesse partido para longe para viver a minha vida?” Le Grand Marin narra uma miríade de vidas simples e ásperas, de alegrias fáceis, de pobreza e de tédio. Nestes tempos do biológico e do sem glúten, descreve na perfeição esse mundo perdido de “junk food” (o hambúrguer e as pipocas são festins, sobretudo quando afogados em whisky e cerveja morna). Mostra um emaranhado de vidas no fim do Mundo, um puzzle de encontros furtivos em esquinas de ruas sujas ou em bares imundos. Mostra de forma maravilhosa como, para conseguir alcançar o Absoluto, antes de se poder sentir verdadeiramente vivo, o Homem tem de se debater com a insatisfação, com a dificuldade de encontrar o seu lugar, no mar ou em terra, com o sacrifício do seu corpo.

Catherine Poulain poupa nas palavras, estende as histórias silenciosas como os quilómetros de redes de pesca que tem de reparar. Ela conta o oceano, os barcos e a inextinguível solidão dos homens.

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