Um lugar para a “música-pensamento”

O’culto da Ajuda, novo espaço da Miso Music Portugal dedicado à criação contemporânea, acolhe pela primeira vez o Festival Música Viva.

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Miguel e Paula Azguime Laura Haanpaa
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O espaço ainda em obras DR
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O espaço ainda em obras DR

Na sua 20.ª edição, o Festival Música Viva conta a partir deste ano com um novo espaço de acolhimento ao qual foi dado o sugestivo nome de O’culto da Ajuda. Situado na Travessa das Zebras, nº 25/27 (à calçada da Ajuda em Belém), corresponde a um sonho antigo de Paula Azguime e Miguel Azguime, fundadores da associação cultural Miso Music Portugal, e pretende ser um lugar dedicado à pesquisa, experimentação, comunicação e partilha de criações artísticas contemporâneas.

O primeiro concerto do festival (sexta-feira, às 21h30) retoma o projecto Cadavre Exquis, inspirado na técnica surrealista da criação colectiva, apresentando 30 das miniaturas acústicas e eletroacústicas oferecidas por compositores portugueses de várias gerações à Miso Music Portugal em 2010 por ocasião do seu 25.º aniversário. Na segunda parte, serão apresentadas duas obras em estreia absoluta (Purity I, de Paulo Ferreira–Lopes, e Konvolut, de Luís Antunes Pena) na interpretação do Sond'Ar-te Electric Ensemble, com direcção musical de Pedro Neves. Sob o titulo O Estado da Arte, o festival inclui ainda, até 29 de Novembro, mais nove concertos, um workshop (Programming in composition and sound art, por Andre Bartetzki), uma instalação sonora e o Concurso de Composição Electroacústica.

Inaugurado nos dias 30 e 31 de Outubro com um concerto pelo Sond’Ar-te Ensemble e a reposição da ópera multimédia de Miguel Azguime Itinerário do Sal, O’culto da Ajuda pretende fomentar as relações entre música e outras artes, com destaque para a poesia, o teatro, o movimento e o design. A nova ópera multimédia, um domínio que tem ocupado o trabalho criativo de Miguel Azguime e Paula Azguime nos últimos anos, será um dos focos principais pelo que o espaço está equipado com um palco amplo, teia e os meios tecnológicos adequados. Parte da obra encontra-se ainda em construção, faltando a plateia — de tal modo que na abertura foi pedido à audiência que contribuísse com uma cadeira — mas a sala permite já a apresentação de concertos e a realização de outros eventos.

No discurso que fez na inauguração, Miguel Azguime falou da necessidade que a Miso Music tinha há muitos anos de um espaço como este, sem que a oportunidade e as possibilidades para o fazer se tivessem conjugado. De tal forma, que há dois anos, “no contexto da assustadora regressão civilizacional a que se vem assistindo”, Miguel Azguime e Paula Azguime começaram a organizar na sua própria casa encontros mensais para fazer e ouvir música e para debater ideias. O’culto da Ajuda surge assim como “um alargamento dessa assembleia”, uma “residência onde os artistas encontrarão um telhado e recursos e saberes tecnológicos de excepção”.

Muitas das palavras de Azguime soaram como um manifesto, ao afirmar a intenção de que este novo projecto seja “um importante e resistente contributo para melhorar a divulgação e conhecimento de uma música que merece ser melhor reconhecida e fruída” e que designou como “música de invenção e pesquisa” — “a outra música num mundo dominado e manipulado pelo marketing e pelo que se vende.” As “des-sensibilização auditiva” em relação a essa “música de invenção pesquisa” é uma das grandes preocupações deste percussionista, compositor e performer, que não se conforma com que esta seja tão “desfavorecida pela preguiça auditiva e pela avidez mercantil”. Sublinhou ainda que não se pode reduzir a música ao entretenimento e à sua componente funcional. “É preciso também ter acesso e aprender a ouvir a outra música, a ‘música-pensamento’, a qual exige uma outra atitude de escuta, reflexão, concentração, sensibilidade e inteligência.”

Esta perspectiva guia há vários anos a Miso Music e o Festival Música Viva. Como é habitual, a música electrónica é um dos campos privilegiados e a edição de 2014 não é excepção. Além da divulgação de criações recentes, contempla também a perspectiva histórica, patente no Concerto-Maratona que se realiza no sábado, às 21h30. Intitulado 40 anos de Música Electrónica, propõe um percurso que se inicia com obras pioneiras da década de 1950 como Sinfonia para um Homem Só, de Pierre Schaeffer e Pierre Henry, e Canto dos Adolescentes, de Stockhausen, até Mortuos Plango, Vivos Voco (1980), de Jonathan Harvey, e Autómatos de Areia (1978-84), de Cândido Lima, passando por criações de Xenakis, Varèse, Berio, Subotnick e Parmegiani, entre outros. Concertos dedicados a obras de música electrónica compostas recentemente por Ludwig Berger, António Ferreira, Elzbieta Sikora e João Castro Pinto terão lugar entre os dias 27 e 29, mas haverá também lugar para a voz e para os instrumentos acústicos. Destaca-se a estreia em Portugal de Timber (2010), de Michael Gordon, para seis percussionistas, sob a direcção de Pedro Carneiro (dia 25), e o programa The Electric Voice, com obras de Risset, Azguime, Stockhausen, entre outros, com a participação do baixo-barítono Nicholas Isherwood (dia 26). Quanto à instalação sonora deste ano (SoundWalk 2014: Revolução e Metamorfose), celebra os 40 anos do 25 de Abril e tem a participação de 12 artistas provenientes de países como a Espanha, Itália, Grécia, Suíça, França, Alemanha, Noruega, Argentina e México (inauguração dia 23, às 18h).

A 20ª edição do Música Viva é dedicada a Fernando Mascaranhas, Marquês da Fronteira e Alorna, que acolheu e apoiou a primeira edição do festival em 1992. 

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