Um livro ou o seu contrário

Manuel Jorge Marmelo conjuga com bastante felicidade distintos movimentos de escrita.

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Do início ao fim do seu último livro, Manuel Jorge Marmelo promove uma operação de sabotagem de géneros, começando desde logo por problematizar as regras do romance policial FERNANDO VELUDO/NFACTOS

O último romance de Manuel Jorge Marmelo começa, desde o título, por um paradoxo. As dimensões de tempo e espaço, juntas num mesmo enunciado, formam o ambiente ficcional, marcadamente tenso e contraditório, em que vai circular parte da trama de O Tempo Morto É Um Bom Lugar.

Aí se apresenta, em antevisão, “o tempo morto da prisão” (p. 38) dominante na primeira parte do romance, Negro. Será esse, a curtíssimo prazo, o destino do narrador na primeira pessoa, Herculano Vermelho, acusado de assassínio (confesso) de uma mulher com quem se envolvera de forma circunstancial e prosaica. Nesse primeiro momento, o romance começa logo a operação de sabotagem dos géneros que promoverá até ao fim: ao praticar e problematizar as regras do romance policial — um corpo, um suspeito, uma investigação —, Manuel Jorge Marmelo (que não o faz pela primeira vez), serve-se delas e desembaraça-se do corpo de delito do género, pois não seguirá fielmente os seus trâmites. Desde logo, porque a solução (falsa?) é dada no início — o narrador matou Soraya —, mas também porque uma sequência intrincada de contradições impede a obediência cega. Por fim, porque, na roleta russa dos géneros que este romance põe a girar, outros géneros se perfilam. Como a autobiografia e até o roman à clef — desde os “inconcretos e incontáveis gatos que habitavam a casa do poeta Manuel António Pina” (p. 47); até alguém que “falou de Peixoto, falou de Mãe, falou de Cardoso, falou de Cruz, de Tavares e de Mendes” (p. 235).

Este romance é um novelo, habilmente urdido, de géneros que conflituam entre si sem solução apaziguadora, mas, igualmente, sem que o tecido romanesco se deixe gravemente prejudicar. Assim, este não é um livro sobre um jornalista que enfrenta o drama do desemprego; nem uma obra sobre a cloaca dos 
reality-shows, derivados mediáticos e outros; tão-pouco um policial sobre a investigação que se segue à morte de uma mulher enleada nos enredos da fama. Porque é tudo isso e a negação de todas as premissas. A certa altura, o narrador da primeira parte do romance olhará, em retrospectiva, para o que foi sendo escrito e indicará: “isto que não sei o que há-de ser, um livro ou o seu contrário” (p. 65). Em certa harmonia de contrários, ou na feliz conjugação de distintos movimentos de escrita, reside um dos pontos mais a favor de O Tempo Morto É Um Bom Lugar.

Contratado para escrever a autobiografia de uma vedeta (paradoxo por excelência, mesmo se fenómeno não inusual) na vertente reality-show, Herculano segue os passos habituais, e relaciona-se intimamente com o objecto da sua escrita, que acaba defunto e provoca as ondas de destruição que cercam o romance. Pelo que o narrador não escreverá o livro — o que não impede que a segunda parte do romance se chame, precisamente, Autobiografia, narrativa na primeira pessoa da ascensão e queda de Soraya. Sucede, porém, que nunca saberemos quem é o verdadeiro autor desse registo. Não só devido às garantias do próprio Herculano — “Não sou o autor da morte de Soraya. Nem serei, se calhar, o autor da autobiografia” (p. 133) —, mas, sobretudo, porque este se suicida. Por outro lado, a investigação que se segue e forma a terceira e última parte do romance, Escritor-Fantasma, volta a baralhar os dados, deixando cada vez mais longe a solução. Até que se perceba, se não se chegou já a essa conclusão, que não é isso que importa. O que neste romance parece, realmente, interessar é que tudo nele luta para representar a própria ideia de escrita. O primeiro narrador faz (ou fazia) das palavras a sua profissão; o elemento central da terceira parte do romance é, também ele, um jornalista, o veterano João António Abelha, que procura em vão elucidar dois mistérios: quem matou a vedeta e quem lhe escreveu a autobiografia. Claro está que nem uma nem outra das intenções se cumprirá. O que, por fim lhe sucederá é deparar-se com um cenário em que “os corpos de Herculano e Soraya transformados em marionetas angustiadas, sendo manipuladas por mão invisível (p. 268), parecem dar corpo à ideia nabokoviana de que o escritor move as suas personagens como um marionetista.

O Tempo Morto É Um Bom Lugar

 consegue ser um bom romance apesar do permanente apelo ao factor construtivo, com constantes interferências metaficcionais — “Uma autobiografia, qualquer que seja, quase nunca é uma obra completa” (p. 36); “As boas histórias só podem começar a ser contadas quando chegam ao fim e se sabe como principiam e também como terminam” (p. 115). Do mesmo modo, o encaixe, no plano geral do romance, de narrativas subsidiárias é uma das armadilhas de que este livro se abeira, mas em que consegue não cair, o que nem sempre sucede. A praga da história dentro da história (antiga, pelo menos, desde a peça na peça em 

Hamlet

) é um dos fetiches da narrativa coeva. Marmelo consegue cometer o requinte de se fazer valer dessa modalidade sem incorrer num design fosforescente e inútil, que não se cumprisse na edificação da estrutura em que se insere.

O romance desce por duas vezes o poço da metaficção. Em ambas, o regresso marca a subida de qualidade da prosa e da composição. Dentro da narrativa de Herculano surge o escritor Ólafur Bjarnason, que, por sua vez, escreve sobre um Estado opressor, a Frihedlândia, mal disfarçado sob uma capa de falsa perfeição. Já lemos esta história vezes de mais. E, de resto, esta já era uma ficção em terceiro grau. Posteriormente, um dos companheiros de cárcere de Herculano, Bernardino Barbas, verá a sua narrativa sugada para dentro do círculo geral de O Tempo Morto É Um Bom Lugar. Sintomaticamente, Barbas abandonou, entretanto, a escrita, tecendo, em vez dela, falsos tapetes de Arraiolos — nos quais é difícil não ler uma metáfora da própria escrita. Porque O Tempo Morto É Um Bom Lugar não deixa de ser um romance sobre a (im)possibilidade da escrita, já que promove uma inquirição da viabilidade da memória. Ao longo do livro, a virtude de lembrar é várias vezes perscrutada e posta em causa — “A memória talvez seja também um vício” (p. 65); “Se ainda vier a ser capaz de me lembrar de alguma coisa” (p. 75). Uma das metáforas mais certeiramente propostas para esta dimensão, tão eminentemente em crise, é a que fala de “fiapos de memória” (p. 91). Uma das personagens (Soraya, ou quem lhe escreveu a autobiografia) aludirá, por exemplo, à “terra queimada do [seu] passado” (p. 197).

Romance de géneros, e da violentação deles, O Tempo Morto É Um Bom Lugar é duplamente uma autobiografia, sem nunca o ser: de Soraya, personagem assassinada e autobiografada não se sabe por quem; e, muito mais subterraneamente, do próprio Manuel Jorge Marmelo, enquanto ex-jornalista. Policial que exibe as pistas para, de seguida, as aniquilar, a junção de todas as suas entradas produz, sobretudo, caminho, e não chegada. Porque este livro interroga, não apresenta soluções. 

 

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