Um entendimento necessário

O contexto artístico português merece melhor e aguarda por decisões reflectidas e por um entendimento necessário.

A querela existente em torno da situação da Colecção da Secretaria de Estado da Cultura (SEC) é uma consequência notória da ambiguidade em torno da estratégia (ou falta dela) e dos objectivos do Estado Português em relação aos acervos de arte contemporânea nos museus nos quais tem responsabilidades (totais, no caso do Museu do Chiado, ou parciais, no caso da Fundação de Serralves ou da Fundação de Arte Moderna e Contemporânea — Colecção Berardo).

Nem sempre foi assim: quando em 1996 comecei a trabalhar com Vicente Todolí na Direcção Artística da Fundação de Serralves, a estratégia era clara, construída pelo Conselho de Administração da Fundação e pela sua Direcção Artística em conjunção de esforços com o Estado Português: Serralves, cujo Museu de Arte Contemporânea se inaugura em 1999, era a entidade escolhida para uma colecção onde as obras de arte portuguesa realizadas a partir de meados da década de 60 do séc. XX integrariam uma colecção internacional que pela primeira vez acontecia numa instituição portuguesa. Com Fernando Calhau, então Director do Instituto de Arte Contemporânea, discutia-se a necessidade de o Museu do Chiado, que até aí se propunha representar a arte nacional até à década de 50, ampliar a cronologia da sua actuação até à década de 60, assim como a possibilidade de uma instituição de arte contemporânea ser dinamizada em Lisboa no Centro Cultural de Belém. Esta instituição contaria com o depósito de uma colecção privada, a Colecção Berardo, e de um fundo de aquisições de obras de arte através do qual seriam adquiridas obras de artistas portugueses e estrangeiros apresentados nas programações de galerias e de instituições portuguesas, a Colecção do Instituto de Arte Contemporânea. Desta ninguém hoje fala, se bem que ela conte com um conjunto significativo de obras de arte depositadas no CCB, sem qualquer enquadramento institucional claro.

A Colecção da Secretaria de Estado da Cultura (SEC) encontrava-se já em depósito na Fundação de Serrralves quando abre o seu museu de arte contemporânea, tendo sempre constituído um instrumento importante para a construção e apresentação das Colecções do Museu. As opções para a aquisição de obras para o acervo de Serralves sempre tiveram em conta o facto de o depósito da Colecção da SEC estar assegurado por um período de 30 anos. Definiram-se prioridades e estratégias em função de um artista português se encontrar ou não representado nessa colecção. Houve obras que se adquiriram para complementar lacunas detectadas e houve obras que não se adquiriram por outras existirem já no acervo da SEC que representavam de modo adequado o trabalho de certos artistas.

O facto de uma colecção do Estado se encontrar em depósito numa instituição que surgiu por iniciativa do Estado português, como o seu principal instrumento para a constituição de uma colecção e a realização de uma programação de arte contemporânea, foi sempre assumido com uma particular responsabilidade no projecto de Serralves, no sentido de divulgar a arte portuguesa no contexto da primeira colecção de âmbito internacional que se constituía em Portugal. Foram organizadas dezenas e dezenas de exposições dentro e fora de Portugal, nas quais as obras da Colecção da SEC foram sempre apresentadas no contexto dos acervos de Serralves que contam, para além deste depósito, com o depósito de outras importantes colecções nacionais como a colecção da FLAD. Em colaboração com um conjunto amplo de autarquias, o acervo de Serralves, contando com a valiosa presença da colecção da SEC, foi apresentado em numerosas cidades portuguesas, num trabalho de descentralização cultural que dinamizou um conjunto vasto de museus municipais, centros de arte e espaços da mais variada índole. É digno de registro o facto de a actual Direcção Artística do Museu de Serralves ter continuado a apresentar, nas exposições realizadas com o acervo da Fundação, várias obras da colecção da SEC, algumas delas há muito tempo por rever, assumindo tal colecção como um utensílio precioso de trabalho.

No entanto, a situação das instituições artísticas portuguesas foi-se modificando ao longo do tempo. O Instituto de Arte Contemporânea desapareceu, deixando uma colecção ainda sem destino nem objectivos definidos pela tutela, surgiu o Museu Berardo que transformou algumas das expectativas existentes em relação ao Centro Cultural de Belém, o Museu do Chiado reactivou-se por iniciativa dos seus directores, ampliando o seu âmbito cronológico até à contemporaneidade, apareceram vários centros culturais com programações artísticas em diversos pontos do país. Poderá ser natural que se queira repensar e redefinir a situação da colecção da SEC em função de algumas destas mudanças. O que já não será natural será tomar decisões sem estudar cuidadosamente com todos os interlocutores os seus objectivos, impôr qualquer solução sem que todos possam confrontar pontos de vista e projectos, de modo a que a própria tutela possa ficar melhor informada para tomar as decisões necessárias. Tudo na vida muda e os protocolos de ontem podem ser revistos, mas nunca esquecidos ou menosprezados. Importa conhecer e avaliar as razões de todos quantos possam estar envolvidos neste processo. Há obras na Colecção da SEC sem as quais a arte portuguesa na Colecção de Serralves perderia momentos fundamentais, há obras na Colecção da SEC que encontrarão num museu de âmbito nacional como o Museu do Chiado uma melhor expressão de aspectos da história da arte portuguesa.

O Museu de Arte Contemporânea de Serralves e o Museu do Chiado têm excelentes profissionais com a maior competência para se sentarem a uma mesa com a Secretaria de Estado da Cultura e trabalharem no sentido de voltar a haver uma estratégia clara na responsabilidade do Estado em coleccionar a arte do tempo em que os portugueses vivem, enriquecendo o património artístico do país. Já agora, conviria adicionar à agenda a discussão da situação das obras adquiridas para a Fundação Berardo com fundos do Estado, assim como o destino das obras pertencentes à chamada colecção do Instituto de Arte Contemporânea. E definir uma estratégia de aquisições para o futuro, com um orçamento adequado às urgências e às possibilidades do presente. Basta de ambiguidades e malentendidos, inaugurações e demissões precipitadas. O contexto artístico português merece melhor e aguarda por decisões reflectidas e por um entendimento necessário.

Ex-Director do Museu de Arte Contemporânea de Serralves

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