Um corpus de revelações inquietantes

Vemos nas obras de Cubas e Levi a eficácia perturbadora das suas pesquisas que inscrevem no corpo submissões silenciadas do Brasil e do Uruguai.

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Em In-Organic a coreógrafa brasileira Marcela Levi traz ao palco o conceito de "corpo-realidade" com um solo de autora.

A mulher despida, aguerrida ou obediente, que carrega uma grande cabeça de boi e se adorna com a corrente de luxo, veste no corpo uma constatação: como seres culturais conseguimos normalizar comportamentos perversos. Na festa de vaqueiros, a euforia do poder macho justifica a subjugação da mulher; no caso da fotografia premiada a consagração institucional instrumentalizou a tragédia pessoal do homicídio.

Levi agarra decisivamente o boi pelos cornos. A precisão nos gestos, tempo das acções, expressão e olhar, inflexões de voz e uso versátil de adereços constroem a denúncia de um pacto explícito em palavras: “Ele gosta; ela gosta; yeahh”. É claro o que a artista quer evidenciar e é notável como o revela, mas a proposta permanece num modelo performativo previsível e afasta-se da reflexão necessária sobre a complexidade da atracção pelo imoral.

Puto Gallo Conquistador, da coreógrafa uruguaia Tamara Cubas, acontece num ambiente sombrio de panos brancos enxovalhados sobre fundos negros. Aqueles humanos estão especados, expectantes, espantados perante um não, implacável, que se abate sobre a sua existência. Os seus cabelos compridos e desgrenhados acusam a condição primitiva e precária. Esta ambivalência expressa-se na locomoção tacteante de cabeça baixa, sobre os quatro membros, que cita o selvagem e o oprimido. Destes corpos sai o som da bílis vomitada quando nada mais há para tirar; escapam urros e falas de boca tapada porque a língua e o protesto são proibidos. Bradam grunhidos mucosos e gemidos da dor visceral.

 Cubas criou uma inquietante pintura viva sobre uma realidade remota: a colonização do seu país que dizimou o povo indígena. O povo unido em matilha acaba por sucumbir enterrado... e depois um imponente bailarino mostra o património que ficou dançando um Malambo (sapateado de tacões), com Balladoras (as fundas da caça antiga). Este remate é uma surpresa irónica e um exemplo da hábil escolha e organização de elementos performativos, plásticos e sonoros que a artista fez, dominando o tempo e o espaço na forma justa.

É improvável sair deliciado do espectáculo de Puto Gallo Conquistador e, no entanto, esta narrativa possível do extermínio da identidade colectiva é sublime.

Porque o Programa Próximo Futuro se assume como lugar que acolhe reflexões do pensamento contemporâneo e interpretações locais do mundo, cruzando práticas e teorias, é oportuno referir métodos de investigação das ciências humanas que operam nas peças de Cubas e Levi. Por um lado, os paradigmas feministas e pós-colonialistas que reclamam a voz do sujeito no escrever da sua história e política; por outro lado, a performative turn que acresce uma nova proposta epistemológica: fazer é mais autêntico do que escrever; permite negociar com o racional e o afectivo e implica o corpo no centro do manifesto. Vemos nas pesquisas antropológicas de Cubas e Levi, focadas no Uruguai ou no Brasil, uma eficácia perturbadora.

Contextualizar estes trabalhos também importa, porque, embora o encaixe na categoria dança não seja óbvio, eles têm ligação a referências conhecidas: In-Organic é familiar ao estilo de Vera Mantero e Puto Gallo aproxima-se das danças Butoh sobre o trauma de Hiroshima. Com o movimento limitado as ideias fazem-se sentir e essa pode ser a melhor forma de as perceber.

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