Um cânone literário que mostre a diversidade da língua portuguesa

No primeiro dia do congressoLíngua Portuguesa: Uma Língua de Futuro o ensaísta Vítor Aguiar e Silva fez proposta concreta para aproximar as literaturas de língua portuguesa.

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Vítor Aguiar e Silva abriu ontem os trabalhos do congresso que termina sexta-feira Sérgio Azenha

Vítor Aguiar e Silva abriu esta quarta-feira em Coimbra os trabalhos do congresso internacional Língua Portuguesa: Uma Língua de Futuro com uma proposta concreta para que as autoridades dos diferentes países de língua oficial portuguesa construam um cânone literário comum, destinado aos alunos dos diferentes graus de ensino, e em particular aos do secundário, uma missão que, sugere, poderia ser centralizada no Instituto Internacional da Língua Portuguesa.

 O cânone literário “é um dos instrumentos mais poderosos e mais eficientes, e um dos mais autorizados e menos autoritários, que podem contribuir para a unidade da língua portuguesa”, argumentou Aguiar e Silva, teórico da literatura, camonista e autor de diversos estudos sobre a língua portuguesa.

Um cânone que o autor da conferência inaugural do congresso não quer que obedeça “a uma norma exclusiva e excludente”, mas que mostre, pelo contrário, como “os grandes escritores dos diferentes países de língua portuguesa trabalharam, afeiçoaram e reinventaram” o português. Uma das suas sugestões é a de que autores e obras sejam escolhidos por entidades indicadas por cada um dos países, e que estas escolhas conjugadas dêem depois lugar a um antologia.

Um instrumento que permitiria que em cada sistema de ensino nacional a literatura do próprio país tivesse uma presença naturalmente maioritária, mas que fosse também assegurada uma representação dos autores de cada um dos outros países de língua portuguesa. “Um cânone literário escolar”, propôs, que mostre a milhões de alunos portugueses, brasileiros, cabo-verdianos, guineenses, são-tomenses, angolanos, moçambicanos e timorenses a diversidade da língua portuguesa, que dê a conhecer a dinâmica de cada literatura nacional, e por consequência da língua portuguesa, nesta relação com os factores históricos, geográficos, sociais ou étnicos de cada país.”

Considerando que este poderia ser um instrumento fundamental para “desenvolver o sentimento de pertença a uma comunidade linguística transnacional e transcultural”, o orador admitiu que o objectivo é difícil, mas realista.

Mas a proposta de construção de um cânone literário escolar que abarcasse todas as literaturas em língua portuguesa e as sugestões de como este deveria ser concebido e executado foram apenas o culminar de uma extensa intervenção em que Aguiar e Silva voltou a demonstrar não apenas a sua reconhecida erudição, mas a sua capacidade de colocar os seus múltiplos saberes ao serviço de um objectivo preciso.

Quando recuou ao helenismo do século III a.C. para identificar as primeiras tentativas conhecidas de elaborar listas selectivas de autores considerados modelares, ou quando discutiu o modo como o romantismo nacionalista europeu desenvolveu o conceito de Volksgeist, de uma “alma nacional”, cujo carácter profundo e autêntico seria justamente expresso pela língua, esteve sempre a preparar o caminho para a proposta que apresentou no final, dando-lhe sustentação teórica e desmontando cautelosa e minuciosamente eventuais equívocos e previsíveis objecções.

Notando que a descolonização dos países africanos “se fez sob o signo de nacionalismos exacerbados e até radicais”, Vítor Aguiar e Silva observou que teria sido de algum modo esperável que estes escolhessem uma língua nativa para as suas literaturas emergentes, hipótese que de resto teve vários defensores, e não a língua do colonizador. Contra esta tese, recordou, esteve uma linha de autores bem representada pelo escritor e político senegalês Leopold Senghor, formado em França, que não via contradição entre sentir como negro e exprimir-se na língua de Corneille ou Victor Hugo.

Entre estas duas posições, o orador lembrou uma terceira via, mais útil para caracterizar as actuais literaturas dos países africanos de língua portuguesa e para servir de referência ao cânone literário comum. O caminho que Jean-Paul Sartre apontou num célebre prefácio, intitulado Orphée Noir, à Anthologie de la nouvelle poésie nègre et malgache de langue française, que Senghor organizou em 1948. Para Sartre, diz Aguiar e Silva, “o Orfeu negro deve aceitar escrever na língua do colonizador, mas para se apropriar dela, para a reescrever, para a reinventar, para lhe imprimir indelevelmente a marca de um estranhamento identitário".

Apresentado pelo professor José Augusto Cardoso Bernardes, seu antigo aluno na Universidade de Coimbra e hoje director da Biblioteca Joanina, Vítor Aguiar e Silva falou a seguir a uma sessão de boas-vindas aberta pelo coordenador científico do encontro, Carlos Reis, que lembrou que “todas as línguas têm passado, mas nem todas têm futuro” e exortou a que se passasse das palavras à acção para evitar que o português possa vir a ter uma morte lenta.

Afirmando que este congresso, que decorre até sexta-feira no Convento de S. Francisco –  numa espécie de pré-inauguração, já que o processo de requalificação ainda não está totalmente concluído –, quer “lançar uma ponte para o futuro do nosso idioma”, Carlos Reis observou que a língua portuguesa é hoje de muitos, e à recorrente citação “A minha pátria é a língua portuguesa” contrapôs a variação de Mia Couto: “A minha pátria é a minha língua portuguesa.”

A presidente do Camões – Instituto da Cooperação e da Língua, Ana Paula Laborinho, fez uma breve intervenção de circunstância, e o reitor da Universidade de Coimbra, João Gabriel Silva, também se limitou a assegurar (e argumentar) a sua convicção de que o português tem futuro no mundo globalizado e não acabaremos todos a falar inglês.

Já o presidente da Câmara de Coimbra, Manuel Machado, cumpriu o seu papel de anfitrião da cidade, mas não se limitou a ele. Defendeu que ao contrário do período de dominação filipina, quando a missão era defender a especificidade e as particularidades da língua como forma de afirmação identitária, hoje “devemos fazer o contrário: simplificar a língua e aproximá-la da fonética”. Foi o que de mais próximo se ouviu de uma defesa do Acordo Ortográfico de 1990, tema que o programa do encontro nitidamente deixou na sombra e que tem no coordenador científico do congresso um dos seus mais notórios defensores, como tem no orador da conferência inaugural um seu também público adversário.

 

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