"Uau! Não conhecia este museu"

O que é um museu nacional? A arte contemporânea pode ajudar a pensar o lugar destas instituições históricas num mundo global e é isso que nos mostra o projecto Año35. Madrid.

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Fleurs et Escargots, de Fernando García DR
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Baporak, de Mikel Eskauriaza DR
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Série Art Exibitions, de Khalil Rabah DR

O crítico de arte Javier Hontoria tem óptimas histórias para contar e sabe-o. Só vamos ter tempo de ouvir três das que compõem o programa de intervenções artísticas realizadas em alguns dos museus nacionais menos conhecidos de Madrid. Uma história de bandidos e caracóis, outra de navios e piratas no Oceano Índico e a última de um museu imaginário na Palestina. Na verdade, as histórias são tão complexas e curiosas que Javier Hontoria bem podia ter ido por outros caminhos. 

Comecemos de manhã cedo pela Calle de San Mateo, perto do Mercado Municipal de Barceló. Vai começar a visita de Javier Hontoria ao Museu Nacional do Romantismo, um dos nove pólos onde se desenvolve o projecto Año35. Madrid. É a programação especial da feira de arte contemporânea ArcoMadrid, que este ano celebrou 35 anos e se estendeu à cidade de uma forma mais intensa do que é habitual. As celebrações querem mostrar que o aparecimento da ArcoMadrid em 1982 marcou o início de um tempo novo para as artes na cidade e em Espanha.

Neste palácio de dois andares, a instalação do artista Fernando García está logo depois da entrada, na sala de exposições temporárias, mas o comissário galga as escadas e passa rapidamente por várias salas até parar diante do óleo Contrabandistas en la Serranía de Ronda (1849), pintado por Manuel Barrón. A cena dos bandidos a descansar, muito horizontal e circunscrita ao primeiro plano, contrasta com a perpendicularidade da montanha, logo ali atrás, mais ameaçadora que os próprios malfeitores à espera, talvez, da próxima vítima.

De volta ao rés-do-chão com o comissário, encontramos Fleurs et Escargots: sobre dois plintos, que espelham a decoração em madeira do museu, Fernando García constrói um par de objectos ambíguos que nos parecem estantes feitas de dezenas de lamelas onde colocamos geralmente os materiais para observar ao microscópio. Porém, estes materiais são aqui tridimensionais e todos iguais. São caracóis, símbolos de regeneração periódica, dispostos rigorosamente nas lamelas-prateleiras.

Fernando García (Madrid, 1975) propõe uma interpretação contemporânea da paisagem da Andaluzia onde se move a figura do bandido, escolhendo, como é seu costume, materiais exteriores à tecnologia das artes plásticas, retirados da natureza ou ligados às tradições populares, pobres por definição. É a disposição dos caracóis que desenha a paisagem abstracta pensada pelo artista madrileno.

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“A ideia é tentar criar um diálogo. Não queremos fazer uma coisa espectacular, mas um diálogo subtil. Queremos interrogar o lugar dos museus históricos no presente, por isso escolhemos lugares que não expõem arte contemporânea mas abordam temas que preocupam os artistas contemporâneos”, explica Javier Hontoria, que também é crítico de artes plásticas do suplemento El Cultural do jornal espanhol El Mundo. O objectivo é o público vir contemplar a instalação Fleurs et Escargots e acabar por ficar mais do que uma hora. E, no final, dizer, espera Javier Hontoria – “Uau! Eu não conhecia este museu”.

A história que o comissário tem para contar é sobre a importância da figura do bandido no romantismo espanhol. Um bandido anónimo, “recorrente na iconografia da época, porque em Espanha tivemos um século XIX muito duro”. Como escreve Javier Hontoria no folheto que acompanha o projecto Año35. Madrid, “se na Europa se encorajava a percepção do Sublime, em Espanha consolidava-se, definitivamente, um género que iria caracterizar boa parte da arte espanhola em décadas sucessivas: o ‘costumbrismo’ [pintura de costumes] e o ideal pitoresco”. Nada de muito diferente do Portugal oitocentista e mesmo novecentista, acrescentamos nós.

Antes de terminar a visita, Helena Valera, que acompanha a visita dos jornalistas, diz que é obrigatório espreitar a casa de chá do Museu do Romantismo, um dos tesouros escondidos de Madrid (tem um pequeno jardim perfeito no Verão). A exposição temporária fica aqui até 3 de Abril.

Piratas no museu
Descemos em direcção ao Paseo del Prado, até ao Museu Naval, da Marinha, ou melhor da famosa Armada espanhola, onde fica outro dos núcleos do projecto. É aqui que se guarda o primeiro mapa europeu que representa a América, o de Juan de la Cosa, que acompanhou Cristóvão Colombo nas suas primeiras viagens.

Todo o Museo Naval parece ele próprio uma instalação contemporânea sobre o lugar da memória, dos arquivos e dos museus nas sociedades pós-coloniais, como se vários discursos novos se pudessem construir sobre um que já parece arqueológico na sua museografia. A sala onde se exibe o trabalho fotográfico do basco Mikel Eskauriaza, organizada em redor dos destroços da nau San Diego afundada a 10 de Dezembro de 1600 ao largo de Manila, em que morreram 300 marinheiros, respeita o ambiente romântico do museu.

A série de fotografias, intitulada Baporak (a exposição fica até 17 de Abril), retrata 23 barcos de pesca bascos que trabalham à escala global, principalmente no Oceano Índico. “Baporak” significa “vapor” em basco, mas os barcos são, na verdade, atuneiros e as imagens foram captadas durante o mês e meio em que o fotógrafo acompanhou a actividade dos pescadores. O que reconhecemos quando olhamos para a série são os códigos de representação académicos copiados da pintura de marinhas, em que dois terços da superfície é reservada ao céu e o resto fica para o mar, explica o comissário, enquanto o barco é pintado numa rigorosa perspectiva lateral. “Há uma subtil relação entre o passado e o presente, entre o aqui e o lá. Estes pescadores bascos partilham uma tradição com os marinheiros bascos muito presentes na história do museu.” Tal como o San Diego, também um dos atuneiros foi atacado por piratas, desta vez ao largo da Somália.

A série dos atuneiros quer dar voz a uma actividade que hoje é “muda”, inivsível, em contraste com “as narrativas panegíricas de um passado glorioso” contadas pelo Museu Naval, explica o folheto. Não é por acaso que a instituição tem a categoria de "Museu Nacional".

No projecto, foram também realizadas intervenções nos museus de Arqueologia (Fina Miralles), Antropologia (Rogelio López Cuenca), Casa da Moeda (Zachary Formwalt e Jane & Louise Wilson) e Cerralbo (Oriol Vilanova), além de outras instituições. É perante uma mundialização que não pára de crescer que Javier Hontoria propõe uma reflexão sobre a forma como lidamos com os museus nacionais. “Acho que há uma atenção ao vernacular e ao local no mundo globalizado. Temos que pensar que tipo de restrições as nacionalidades oferecem e quais as que podemos evitar. A Espanha é um país em que a ideia de nacionalidade é muito forte, muito presente.”

Porque é que os artistas contemporâneos estão tão interessados neste passado narrado pelo museus? - perguntamos ao comissário. “A forma como apresentamos e lidamos com a história é um dos assuntos chave da arte contemporânea. Acho que o projecto quer epitomar a ideia como lidamos com a museografia, como arquivamos.” Talvez tanto como questões nacionais estes museus, com algumas narrativas gloriosas, levantem problemáticas pós-coloniais? “Bem, nós temos um passado colonial, como outros países. Esse é um dos tópicos a ser explorado aqui. Há pessoas que ficarão em determinadas camadas e outras vão procurar a complexidade. Queremos mesmo que as pessoas sintam estranheza e perguntem o que se está a passar.”

Museu imaginário
As perguntas mais complexas no projecto Año 35. Madrid são, no entanto, colocadas pela intervenção do artista palestiniano Khalil Rabah na Casa Árabe, um edifício neomudéjar que dá para o Parque do Retiro e que é um instrumento importante no relacionamento de Espanha como o mundo árabe desde que abriu em 2007.

Em Madrid, o Museu Palestiniano da História Natural e da Humanidade voltou a crescer e desta vez Rabah acrescentou uma nova peça ao departamento de antropologia e botânica, num work in progress iniciado em 2003 e que tem como objectivo dar a conhecer a arte e cultura do seu país. Javier Hontoria considera um dos "highlights" do comissariado. “O museu cresce cada vez que faz uma exposição, sendo uma nova ala construída. E cada uma funciona como exposição e arquivo.” 

Nesta nova ala, encontramos uma caixa de luz que reproduz um tanque de água. Estamos na Cisjordânia, num cenário algo pitoresco, mas o tanque está rodeado por uma cerca. Duplamente cercado, porque na sala da Casa Árabe o artista também colocou uma vedação, desta vez à volta da caixa de luz. “A peça fala da dificuldade de movimento no território palestiniano depois dos Acordos de Paz de Oslo, da impossibilidade de acesso aos recursos naturais.”

A peça está acompanhada por outros trabalhos de Khalil Rabah, que vive em Ramallah mas tem apresentado o seu trabalho em várias bienais e museus, como a instalação United States of Palestine Airlines e a série Art Exibitions. Se a primeira é uma nova ficção em redor da criação uma companhia de aviação que une na mesma marca Estados Unidos e Palestina, com uma intenção irónica óbvia, a segunda joga na apresentação de um conjunto de pinturas que figuram, por sua vez, inaugurações de exposições de arte palestiniana por todo o mundo.

São quadros dentro de quadros, que pintam outros quadros exibidos mesmo ao lado, que por sua vez reproduzem fotografias, num jogo de representações que na história da pintura evoca, para nós, Las Meninas, de Velázquez, que está não muito longe dali no Museu do Prado. Um jogo sobre os limites entre pintura e realidade, a ilusão, o lugar do espectador e do próprio pintor, uma reflexão sobre que história de arte é contada pelos museus e quais são as historiografias que dominam.

Nesta obra de Rabah, há exposições que não sabemos se chegaram a acontecer, mas a que foram pessoas que reconhecemos - contam as pinturas da série Art Exibitions para memória futura - como o artista italiano Michelangelo Pistoletto e o curador palestiniano Jack Persekian. Nós podemos vê-los a conversar, com o seu ar cosmopolita, ao lado de jovens mulheres com hijab.

Tal como a anterior, esta exposição pode ser vista na Casa Árabe até 17 de Abril. De fora do périplo do comissário, além dos outros museus, ficaram as exposições de Johanna Calle, na Embaixada da Colômbia, o país convidado no ano passado pela ArcoMadrid, e de Adriano Amaral, o artista brasileiro que a galeria portuguesa Múrias Centeno levou à feira de Madrid e que talvez voltemos a ver em Maio na ArcoLisboa.

O PÚBLICO viajou a convite da Turespaña/ArcoMadrid

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