Turistas, mas relutantes

Quem mora em Lisboa, na “zona histórica” (designação que é já uma entrada no assunto), teve de se iniciar, desde há algum tempo, a um novo hábito: o do autóctone que partilha a cidade, na condição de minoritário, com uma multidão de turistas. A maior parte das vezes, para descrever essa multidão, o autóctone utiliza palavras como “rebanho” ou “horda”, pois não consegue evitar um olhar com vagas e espontâneas pretensões antropológicas ou etológicas. A partilha não é simétrica, de maneira que o convívio, parecendo harmonioso, poderia testemunhar um diferendo insanável: para os autóctones, a cidade é objecto de um uso (que não tem de ser sempre pragmático); para os turistas, a cidade é objecto de consumo. Muitos destes autóctones que reagem silenciosamente com alguma impaciência à invasão do seu espaço vital (conceito com conotações sinistras) têm de se lembrar, em cada momento, que também já foram invasores, e continuarão a sê-lo, munidos de um mapa e de um guia turístico que fornece o programa e a lista de tudo “o que há para ver”. Poucos serão hoje os que se podem gabar de fazer a objectivação jocosa da figura do turista sem estarem a falar de si próprios. Mas esta guerra silenciosa entre autóctones e turistas (da qual algumas artérias de Veneza, não toda a cidade, são o campo de batalha mais exemplar) não é a única que se desenrola nos centros das cidades europeias que têm património histórico “a ver” e que, por isso, disponibilizam hoje uma vasta parafernália de veículos e instrumentos para o sightseeing people. Há uma outra guerra ainda mais inconfessável: os turistas são um pesadelo uns para aos outros, recíprocos ladrões do sentido da aventura e da magia com que partiram para a viagem; e, além disso, cada turista é, para o seu semelhante, um espelho onde este vê reflectida a sua imagem de pessoa caricata, infantil, gregária, rendida a uma alegria imbecil, parodiante de uma mobilização geral. Por isso, o ethos do turista consiste em imaginar que se pode subtrair à multidão, mesmo no momento em que participa activamente nos fluxos e tropismos que a movem. Denunciar e criticar desta maneira o turismo não tem nada de original e corresponde sempre a um ponto de vista muito reaccionário. Todo o turista — isto faz parte da ilusão com que parte e, mesmo que o desencanto seja sistemático, ela renova-se sempre que faz uma viagem turística — reclama implicitamente uma exclusividade da sua viagem e quer distinguir-se do bando sightseeing, da plebe itinerante que viaja a baixo preço com uma lista preparada do “para ver” e que lhe irá roubar toda a ilusão de liberdade com que partiu. Com a invenção da viagem comum, Thomas Cook nem imaginava certamente aquilo a que estava a dar origem. O diletante Lord Byron é talvez o arquétipo da versão romantizada do turista moderno. Já Goethe, com a sua Viagem a Itália (empreendida ao longo de 1786 e 1787) pertence a uma outra categoria. O seu impulso é de outro tipo (de resto, no seu tempo ainda nem tinha aparecido a palavra “turista”), como mostra bem o gesto que o leva a sair das termas de Karlsbad, de madrugada, não para regressar à sua casa de Weimar, mas para iniciar a viagem, sem dizer nada a ninguém. E, cerca de 30 anos depois, essa viagem a Itália transforma-se em literatura, transmite-se como uma verdadeira experiência a que nenhum turista e nenhum viajante podem hoje aspirar. Para o nosso tempo, o turismo é o modo por excelência de nos darmos conta de que estamos irremediavelmente incapacitados de viver uma verdadeira experiência.

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