Três anos a ler Dom Quixote e o São Luiz não enlouqueceu

Nos últimos três anos, o Teatro São Luiz em Lisboa reuniu uma comunidade de leitores para uma leitura integral do Dom Quixote. Nestas sessões, abertas a qualquer um, descobriu-se como Cervantes sabe falar do nosso tempo.

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Retrato de Miguel de Cervantes, atribuído a Juan de Jáuregui DR
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Em sessão houve leitura e discussão de obra de Cervantes José Frade

Luís Meneses fez 60 anos no dia 15 de Novembro de 2011 e achou que, antes de ir beber um copo com os amigos, ler uns capítulos do Dom Quixote seria uma boa ideia. Quinze dias antes tinha estado no Jardim de Inverno do Teatro Municipal São Luiz, em Lisboa, numa sessão de leitura desse livro e disse aos organizadores que da próxima vez ia trazer umas 50 pessoas porque fazia anos. Eles acharam bem. Quase três anos depois, esta segunda-feira, às 21h, lê-se o último capítulo da obra de Miguel de Cervantes no ciclo Ler Dom Quixote, programado pelo São Luiz.

“Aquilo podia ter ficado por ali, mas às tantas estava a fazer todos os possíveis para ir sempre”, conta Luís Meneses, o engenheiro que depois daquela noite de aniversário passou a comer qualquer coisa rápida ao jantar das terças-feiras para conseguir estar às 21h no São Luiz.

Nessa primeira sessão a que foi leram-se alguns dos primeiros capítulos da obra – eram cerca de dois a três em cada uma das 59 sessões, desde Setembro de 2011, e usaram as traduções de José Bento (disponível na Relógio D'água e na Livros Cotovia), Aquilino Ribeiro (Bertrand) e de Miguel Serras Pereira (Dom Quixote), havendo também edições da Moderna Editorial Lavores e da Mel Editores. Segunda-feira completa-se a leitura integral da obra. “Já tinha começado a ler, mas tinha ficado a um quarto. Foi uma oportunidade de ler o livro todo, mas também de fazer parte pela primeira vez de uma comunidade de leitores. Descobri que a leitura em voz alta e partilhada – cada pessoa lia um excerto – dá prazer”, conta.

“A comunidade de leitores manteve, ao longo destes três anos, 35 ou 40 pessoas que iam quase sempre. Às vezes ia menos gente, chegámos a ter sessões com dez, mas também chegámos a ter 100 pessoas numa sessão”, diz José Luís Ferreira, o director artístico do São Luiz que, ao chegar ao teatro, em 2011, quis iniciar um programa que se mantivesse em todo o seu mandato como “uma espécie de subtexto permanente”. O seu mandato termina com a temporada 2013-2014.

“Também poderíamos ter lido Marcel Proust ou Homero, porque queríamos uma obra monumental. O Dom Quixote tem a vantagem de ser divertido e estar dividido quase que em pequenas novelas”, explica José Luís Ferreira. Para a escolha desta obra contribuiu o facto de ter encontrado na altura o escritor, encenador e realizador Alvaro García de Zúñiga (1958-2014), que tinha um grande entusiasmo por ela. Acabou por ser ele o comissário do ciclo, juntamente com Teresa Albuquerque, casada com este escritor.

Na última sessão, esta segunda-feira, aberta a todos os queiram participar como foram todas as outras, vão ler-se e comentar-se alguns textos de Alvaro Zúñiga, falecido em Abril de 2014, em jeito de agradecimento, lê-se na página do São Luiz.

“Não era professor nem académico, mas desenvolveu uma grande reflexão à volta da obra e foi convidado para dar um seminário sobre a obra na Sapienza – Universidade de Roma”, conta o director artístico.

Teresa Albuquerque ficou a conhecer melhor Dom Quixote com esta experiência e com a “entrega do Alvaro”, diz, que era “grande conhecedor da obra e de tudo o que foi escrito sobre ela – não era possível apanhá-lo em falso”. 

Num projecto de três anos, a estrutura do livro ajudou estas sessões que tinham um intervalo de 15 dias, diz Luís Meneses. “Está organizado em capítulos que funcionam por si, são como pequenas histórias. Além disso, são divertidas e rir é óptimo. Rir em grupo é ainda melhor”, conta.

Dom Quixote é como um comboio em que se pode entrar em qualquer apeadeiro”, diz Teresa sobre a estrutura do romance, acrescentando que esta obra foi escrita por Cervantes com o objectivo de ser lida em voz alta. “É um livro que traz para a grande literatura os modos simples de falar: com estrangeirismos, maneirismos, incorrecções. É escrito com várias vozes para serem ouvidas”, diz.

Em cada uma das sessões, para além da leitura e dos comentários, muitas vezes guiados por Álvaro Zúñiga, houve sempre a preocupação de ir mudando qualquer coisa, diz Teresa, porque três anos é muito tempo para não se inovar. Foram tendo convidados, como o ensaísta Eduardo Lourenço ou o artista plástico Miguel Palma. Projectaram-se filmes como Dom Quixote, de Orson Welles, recorda Luís Meneses, lembrando-se logo a seguir da participação de Rui Vieira Nery, que falou sobre a música no tempo de Cervantes. “Tivemos até uma engenheira astrofísica que falou sobre tecnologia, uma questão que também aparece neste livro”, conta Teresa Albuquerque. Para José Luís Ferreira a ideia destas participações era “chegar à obra de várias formas” e “expandir o seu alcance”.

“A leitura actualizada implica que só possamos ler com os nossos olhos de contemporâneos”, explica. “O jogo das artes acontece entre a memória e o futuro e por isso é sempre um exercício político e de cidadania”, conclui o director artístico.

Para Teresa Albuquerque é difícil dizer o que é que Dom Quixote nos pode contar sobre a nossa vida  hoje em dia. É difícil, não porque este livro do século XVII não tenha nada a ver connosco, mas, pelo contrário, porque são muitas as questões que se viveram naquela época e que hoje persistem. “Foi escrito no contexto da novidade que era o aparecimento da tipografia, que permitia um acesso mais generalizado aos livros – uma das coisas que pode ter motivado a escrita do romance. Cervantes interroga-se sobre a possibilidade de se confundir a realidade com aquilo que se lê nos livros, em especial nos maus livros, e de essa confusão levar à loucura”, explica Teresa.

O autor estava a lidar com uma invenção recente com efeitos que ninguém conhecia e que só se podiam adivinhar. Hoje conhecemos os livros, mas já vimos esta questão ser colocada quanto à televisão, no século passado, e ainda não conhecemos todos os efeitos da Internet e das redes sociais. Cervantes, do século XVII, não nos deixa esquecer que podemos enlouquecer.

 

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