Treblinka é já ali

Ao deputado da República que invocava o humanismo como legitimação ideológica da lei agora aprovada que criminaliza o abandono e o mau trato dos animais seria necessário responder com toda a veemência que dispensamos as lições do humanismo, em todos os domínios em que ele gosta de nos dar lições e neste em particular. Por uma razão simples, mas que gosta tanto de se dissimular como a natureza gosta de se esconder: foi o humanismo que fez do mundo inteiro um imenso matadouro. O humanismo é um credo que está sempre a ser recitado. A selecção, a criação e o abate industrializados dos animais são de uma racionalidade técnica sem falhas e demonstram o elevado apuro da civilização na planificação racional do “parque humano”. Esta noção de “parque humano” foi desenvolvida por Peter Sloterdijk numa célebre e muito polémica conferência onde estabeleceu uma relação directa entre o humanismo e a “antropotécnica”, palavra que designa um teorema filosófico e antropológico de base segundo o qual o homem é fundamentalmente um produto e não pode ser compreendido se não analisarmos o seu modo de produção. Como não ver que um nome abstracto como “biodiversidade” não soa nada bem e não serve para nomear a infinita declinação das manifestações e dos estados do mundo animal? Tal nome pertence, inteiramente e sem atritos, à lógica — ao discurso — contra a qual ele finge estar. Uma ecologia crítica facilmente o identifica com uma tradição idealista e humanista. Para um sistema idealista, escreveu Adorno num texto sobre o anti-semitismo, os animais desempenham virtualmente o mesmo papel que os judeus para o sistema do nazismo. Esta ideia foi formulada de outra maneira pelo escritor judeu americano, nascido na Polónia, Isaac Bashevis Singer: “Para todas essas criaturas [os animais], todos os humanos são nazis; para os animais, há um eterno Treblinka.” Partindo desta frase de Singer que faz referência a um campo de extermínio construído pelos nazis na Polónia, o historiador americano Charles Patterson escreveu um livro, publicado em 2002, cujo título é Eternal Treblinka. Our Treatment of Animals and the Holocaust. Não é fácil desmontar as falácias e denunciar os encantos do humanismo hegemónico — esse discurso das boas intenções e do senso comum que dispensa qualquer pensamento. E é certamente chocante para quem está imerso nele e não faz qualquer esforço para vir à tona, pois só sabe respirar nesse meio, receber a notícia de que o nazismo foi um humanismo. Claude Lévi-Strauss fez um requisitório ainda mais completo: o humanismo está implicado em “todas as tragédias que vivemos, primeiro com o colonialismo, depois com o fascismo, finalmente com os campos de extermínio”. É muito crime para tão beata entidade. Os animais não sabem que nós lhes demos nomes, que os classificámos e categorizámos, que escrevemos que eles não tinham alma e que não eram dotados de logos (aquilo que faz do homem um “animal político”) e, mais recentemente, que eles não podiam ser sujeito do direito porque não são um sujeito moral. Os animais não sabem, tão-pouco, que passa neste momento um anúncio na televisão, da cadeia de supermercados Intermarché, onde se vê um pastor muito urbanizado e com aspecto de “empreendedor”, no meio de um prado viçoso, a olhar com alegria os bois e as vacas a pastarem. Esta cena bucólica, que faz lembrar a pintura inglesa do século XVIII, fecha com um incitamento a comermos bifes tenros e seleccionados das castas mais genuínas da espécie bovina. O humanismo é este anúncio e Treblinka é já ali, num supermercado perto de nós. 

Sugerir correcção
Comentar