Tragédias quotidianas

Mais uma colectânea de singulares dramas humanos por um dos grandes autores de língua portuguesa. Esta ganhou o prémio Jabuti de conto

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Rubem Fonseca é um mestre do conto breve Pedro Maia/Arquivo

Rubem Fonseca (n. 1925) – Prémio Camões em 2003 – criou com a sua originalidade temática e estilística uma corrente nas letras brasileiras contemporâneas apelidada de “brutalista”, devido à permanente atmosfera de violência (muitas vezes apenas latente, outras brutalmente explícita) com que envolve as narrações. Estas – sejam elas contos, novelas ou romances – têm quase sempre um elemento “policial” (criminal), quer na sua estrutura quer na história que se conta, e estão carregadas de expressivas marcas de oralidade urbana (mas de um discurso directo que não é a simples reprodução de falas, daí não ser raro que nas histórias de Fonseca um “bandido da rua” use expressões latinas, por exemplo, um polícia divague acerca de um mito grego, ou uma mãe de santo se refira a Balzac ou a Chatwin).

À semelhança do que acontece em todos os contos de Fonseca, também os que compõem Amálgama – vencedor do prémio Jabuti de conto – são sempre narrados pelas personagens. Mais uma vez, é uma colectânea de pequenas tragédias das existências quotidianas, de singulares dramas humanos numa grande metrópole como o Rio de Janeiro, em que a violência é íntima da solidão e da brutalidade do vazio do espírito, numa sociedade onde toda a transgressão é punida. É assim que acontece, por exemplo, no conto Decisão em que um matador (mas que se recusa a matar mulheres) é contratado para eliminar um homem, mas que acaba por decidir não fazer o trabalho quando descobre que ele é anão. “Não matei o cara e perdi uma boa grana. Mas ele era um anão. Anão também não mato.” Ou ainda a história Conto de amor em que um pai fabrica propositadamente uma bomba par dar ao filho deficiente sabendo que ela vai explodir. Ou uma avó que quer vender o neto recém-nascido, no conto “O filho”, para poder comprar uma dentadura, mas como o neto nasce deficiente acaba por o deitar ao lixo. O mundo sujo da criminalidade continua com a mesma sujidade depois de ter sido “feita justiça”, não há possibilidade de remissão nas histórias de Fonseca. E não raramente os “bandidos” são os anti-heróis românticos e solitários, apesar do seu característico “ódio frio”, e os “bons” são cépticos e cínicos face ao mundo, e nem sempre tão “bons” como seria de esperar.

Rubem Fonseca empresta a quase todas as histórias uma dimensão sexual, de uma sexualidade febril, muitas vezes cheia de ambiguidades. Dito assim, o leitor poderá ser levado a pensar de imediato num outro contista brasileiro, Dalton Trevisan, mas é grande a diferença: em Trevisan tudo parece passar-se numa estranha dimensão oculta, é um actuar por detrás do cenário num mundo de desejos reprimidos, acções que têm lugar em espaços escuros e atávicos (abundam em todos os seus livros), espaços de traição, numa aparente fuga ao lícito. Enquanto em Fonseca a sexualidade é sobretudo solar, enérgica, iluminada pelo desejo (embora por vezes de uma maneira exacerbada) dos corpos adultos, mesmo quando há crime há um julgamento moral que condena os actos. Em Rubem Fonseca, a violência e o erotismo (muitas vezes associados sob a forma de obsessões sexuais) estão sempre presentes, não para serem apenas retratados como características da vida urbana nas grandes metrópoles, mas como expressão da incurável solidão dos indivíduos, qualquer que seja o seu estrato social. Em Amálgama são várias as histórias com esta dimensão obsessiva pelo sexual, como por exemplo, Devaneio, em que um homem vende a casa herdada para poder cumprir uma obsessão antiga, picar com uma agulha as mamas de silicone de uma mulher; ou ainda o conto O espreitador, em que um homem misógino espreita mulheres em movimento e com os braços e as pernas descobertas, pois quando pensa “em mulheres de calça comprida fico num estado de nervos incontrolável e, se não tomei o meu remédio, passo a dar socos nas paredes”.

Rubem Fonseca é um mestre do conto breve (sem dúvida um dos mais importantes da nossa língua), tornou-se conhecido pelo ambiente cómico (mas bastas vezes angustiante) que empresta às narrativas, e sobretudo pelo relevo que dá aos habituais incidentes do quotidiano, mas em que ele faz questão de sublinhar o seu lado grotesco e sobretudo cínico.

Amálgama

 é uma colecção de episódios que se renovam, histórias (e também alguns poemas e um ou outro texto de pendor quase ensaístico) reveladores de uma experiência vivida no mundo urbano, são “repetitivos” no sentido da sua construção, pois são obras que acabam sempre a invocar histórias anteriores, personagens-tipo, à deriva numa cidade que parece afogar-se na solidão, e sempre a mesma, o Rio de Janeiro.

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