Tradição e modernidade

Romance social que se afasta dos típicos romances de costumes do século XIX. Construído sobretudo na oposição entre diferentes perspectivas dos efeitos da Revolução Industrial.

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Norte e Sul é um “romance social” do século XIX com um olhar sobre os papéis de género que, à época, estavam delineados

Entre os finais de 1854 e os primeiros meses do ano seguinte, Charles Dickens publicou em fascículos, no jornal que dirigia, Household Words, o seu romance Tempos Difíceis (E-primatur, 2016). Quase pela mesma altura, e porque ficara bastante impressionado com o romance Mary Barton, convidara a sua autora, Elizabeth Gaskell (1810-1865), a escrever um outro para essas páginas semanais. Assim surgiu Norte e Sul, que acabou por ser publicado em livro em 1855, acrescentado de uns quantos capítulos que tinham ficado de fora da publicação no jornal.

O primeiro romance de Elizabeth Gaskell, Mary Barton (1848), tinha como cenário a cidade industrial de Manchester e os seus protagonistas pertenciam a duas famílias pobres, sendo o livro uma espécie de retrato da vida vista na perspectiva da classe trabalhadora. Em Norte e Sul, grande parte da acção tem lugar em Milton (cidade fictícia no Norte de Inglaterra, sujo e fumarento), e a principal protagonista é originária do Sul, rural e aristocrático, dando deste modo ao narrador/autor a possibilidade de tecer considerações sobre ambas as perspectivas.

Margaret Hale, a protagonista, cresceu em Londres em casa de uma tia e de uma prima, e passava férias de Verão em casa dos pais no Hampshire, em Helstone, um lugar que era “como uma aldeia num poema”. Devido ao casamento da prima, voltou para casa dos pais abandonando Londres “com uma triste sensação de mágoa pelos tempos que não voltariam a repetir-se”. O pai, um pastor protestante, atravessava uma crise de fé e informou o bispo que deixaria de trabalhar, tendo assim que deixar o presbitério em Helstone. Com a ajuda de um antigo conhecido dos tempos de Oxford, encontra um lugar de professor particular na cidade industrial de Milton, onde alguma burguesia deseja aprender ou que os seus filhos aprendam. Margaret duvida e interroga o pai: “Mas que interesse poderão os industriais encontrar nos estudos clássicos, na literatura ou nas aptidões próprias de um cavalheiro?” (pág. 44) Um desses industriais é o senhor Thornton, um self-made-man, que mais tarde privará com a família Hale. Cumpridos os preparativos para deixar o Sul rumo ao Norte, os Hale daquela cidade que a indústria têxtil torna fumarenta. “A algumas milhas de distância de Milton, avistaram uma nuvem muito escura, da cor do chumbo, suspensa no horizonte, na direcção em que ficava a cidade.” (pág. 65)

Estranhamente, ou talvez não (dada a natureza da sua publicação em fascículos), o romance parece ter três inícios: o primeiro ainda em Londres (trazendo de imediato ao leitor memórias de romances de costumes e os livros de Jane Austen); um segundo começo no retorno ao lugar idílico de Helstone; e um terceiro, e definitivo, na chegada a Milton. Se Elizabeth Gaskell se afasta aos poucos de Jane Austen (Orgulho e Preconceito e Mansfield Park), aproxima-se da escrita de Charlotte Brontë – de quem foi aliás amiga e autora da sua biografia (que continua a ser tida como uma das mais importantes da literatura inglesa).

Uma vez chegada a Milton, a protagonista, através de novos conhecimentos e de amizades, começa a acompanhar a vida de alguns trabalhadores da indústria têxtil, com todas as suas dificuldades económicas e doenças. É assim que nos faz um retrato do ambiente fabril, das condições de trabalho, das ilegalidades, da exploração. Mas ao mesmo tempo, dá também uma perspectiva do lado do patronato, do que pensavam, e dos dilemas em que por vezes se encontravam: “não era provável que se compadecesse mais com o destino dos operários (…) sendo obrigados a prostrar-se e a deixar-se sucumbir em silêncio num mundo que já não lhes encontra préstimo, ainda que sentissem que nunca poderiam descansar nos seus túmulos por causa dos persistentes gritos de pessoas amadas e indefesas que deixariam para trás” (pág. 161) Surgem também as primeiras greves organizadas, os primeiros sindicatos, os motins. Elizabeth Gaskell fugindo ao “romance de costumes” da época, sobretudo daqueles escritos por mulheres – o que lhe valeu bastantes e ferozes críticas – retrata de maneira quase ímpar (aqui aproximando-se muito de Dickens) a luta por uma melhor redistribuição dos rendimentos que a revolução industrial trouxera: “eles querem ficar com uma parte dos lucros, principalmente agora que a comida está a ficar mais cara; e os homens do sindicato dizem que não estarão a cumprir o dever deles se não fizerem os patrões pagar a parte que é devida aos trabalhadores” (pág. 159)

Norte e Sul é um “romance social” do século XIX construído na oposição entre lugares, entre perspectivas, entre a tradição e a modernidade, e onde, curiosamente, há um olhar declarado sobre os papéis de género que, à época, estavam bem marcados e delineados.

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