Tochada da grossa

Ainda há ruído nos Swans — mas agora também há cordas, coros e até um groove sexual. Bem-vindos ao inferno (ou à vida) segundo Michael Gira

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O novo disco dos Swans acende luzes na zona do cérebro onde se congemina o medo: o mal, antes grotescamente explícito em torrentes de som, é agora uma detalhada operação de atentado à psique

Por amor à vossa saúde, mantenham um espelho à vossa frente durante a escuta de To Be Kind. É que os Swans podem já não ser a máquina de espancar aparelhos auditivos de antigamente, mas no lugar do ruído absurdo que usavam antes para nos atacar está agora uma máquina indutora de disrupção, muito mais refinada na arte da tortura mental, com uma capacidade insana de conjugar sons assustadores cuja audição consecutiva pode muito bem endrominar o vosso aparelho perceptivo, ao ponto de ficarem com um dos lados da boca apanhado (possível AVC) ou com o batimento cardíaco acelerado (possível ataque de ansiedade) ou com a audição e a visão alteradas (possível ataque de pânico), entre outras maleitas. Antes, o mal nos Swans era grotescamente explícito em torrentes de som; agora é uma cruel e detalhada operação de atentado à psique, em que um simples truque (um móbil rítmico, uma ideia melódica) vai sendo repetido, incrementado por minúsculas harmonias dissonantes (que podem advir de instrumentos orgânicos ou não, é difícil precisar a origem do som e quer-me parecer que essa confusão é propositada) que assinalam luzes na zona do cérebro onde se congemina o medo. Detalhes harmónicos acumulam-se, aumentam de intensidade, crescem, enquanto a voz de Michael Gira começa por sugerir um registo meditação oriental (seja isso o que for), antes de a meditação ir para o galheiro e acabar tudo à pancada com a instrumentação a ser vítima de abuso. Bring the sun/Touissant l’ouverture, a quarta faixa, é exemplo disso: se conseguirem escapar às incontáveis canções diferentes encerradas nestes 34 minutos sem os vossos intestinos, estômago e baço acabarem num nó, se conseguirem chegar impávidos ao fim destes 34 minutos desenhados para escachar o interior da vossa caixa craniana, se conseguirem chegar ao fim destes 34 minutos sem se deitarem na cama em posição fetal a chuchar no dedo e a murmurar “mamã, mamã, porque me abandonaste?”, então parabéns: ou sois dos duros, ou precisais de urgente ajuda psiquiátrica. 

Não se retire daqui que os Swans andam formulaicos: a ideia de acumulação tem demasiadas variantes para que se possa rotular To Be Kind; na escassa meia-dúzia de minutos de Some things we do (a canção mais curta do disco fica-se pelos cinco minutos, mas em média os temas atiram-se à dezena) há cordas e um órgão pleno de reverberação enquanto Michael Gira, o xamã da banda, narra “We fuckwe lovewe forgetwe regretwe cheat”; durante os 17 minutos de She loves us há palmas, coros, cânticos que parecem movidos a alucinogéneos, uma explosão noise pelo meio e rock cheio de groove mais à frente. Groove que, não sendo um dos elementos mais presentes de To Be Kind, quando surge é à séria — e não é por acaso que Gira tem afirmado que este é um disco que também serve (e parafraseamos a eloquente definição de Gira) para foder, mas foder durante muito tempo e à bruta. Uma faixa atmosférica abranda o ritmo cardíaco antes do ataque aos sentidos de Oxygen, e ogroove regressa numa secção de Nathalie Neal (10 minutos de rock pérfido e suado). No final de To be kind, a última faixa, há mais explosão sonora antes do silêncio — para trás ficou uma travessia pelas emoções mais extremas que um ser humano ocidental pode experimentar, musicadas de forma a que nunca se adivinhe o que vem a seguir. O que Michael Gira nos diz, com os seus período de silêncio seguidos de rajadas de guitarras ou múltipla artilharia sonora atacando-nos de todos os lados, pode ser reduzido a isto: tu podes tentar controlar tudo o que quiseres; mas o caos domina o mundo e é muito mais poderoso do que tu. Sê humilde e reza para que não te caia o azar em cima. Obra-prima.

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