Tim Etchells, o construtor de palavras

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Tim Etchells em Lisboa, na apresentação do seu programa para a cidade DANIEL ROCHA

Desde ontem, o autor e encenador por trás do colectivo Forced Entertainment é um lisboeta. Depois da estreia com a coreógrafa belga Anne Teresa de Keersmaeker, a segunda edição da bienal Artista na Cidade abre-se ao desafio da linguagem

“Queríamos pôr em causa. Questionar. Perguntar. Reagir. Talvez fosse político. Talvez fosse estratégico. Não o sabíamos na altura. E entretanto passaram 30 anos.” Tim Etchells, 51 anos, autor, encenador e rosto mais visível do colectivo britânico Forced Entertainment é, desde ontem e por um ano, artista da cidade de Lisboa. Na bagagem traz oito peças, três encomendas, e um trabalho visual pronto a deixar marcas na cidade — um programa que junta os teatros municipais Maria Matos e São Luiz, a Culturgest, o Centro Cultural de Belém (CCB), o Carpe Diem — Arte e Pesquisa e os festivais Alkantara e Temps d’Images.

Tivesse a República dos Corvos os seus cavaleiros e Tim Etchells, o afável bonacheirão que se tornou presença regular nos palcos nacionais, seria o segundo a ser entronizado — isto depois de Lisboa ter derretido, em 2012, o tímido (leia-se: confortavelmente gélido) coração da coreógrafa belga Anne Teresa de Keersmaeker. “Nunca são muitas as oportunidades para apresentar, desta forma retrospectiva, o nosso trabalho”, começa Etchells por contar ao Ípsilon sobre esta “surpresa que é um desafio”. Tal como têm sido um desafio estes 30 anos de trabalho em que “cada espectáculo reforça e reinventa uma relação com quem vê”. “Ao dirigirmo-nos directamente ao espectador, permitimo-nos criar um presente imediato. Como se lhe disséssemos: vamos criar alguma coisa juntos”, explica o Artista na Cidade 2014 a propósito da peça que ontem abriu o programa, As Festas de Amanhã (Maria Matos, até amanhã), exercício de storytelling futurista para dois actores. É assim, como um acto de contar histórias, que vê o teatro: a palavra é para Tim Etchells um mecanismo de criação de ilusões.

Acompanhando o advento dos Young British Artists — o termo que se usou na Inglaterra thatcheriana para designar o surgimento de novos nomes nas artes plásticas e visuais —, o colectivo Forced Entertainment, sediado em Sheffield, pólo industrial massacrado pelas políticas liberais da Dama de Ferro, protagonizava o que mais tarde viria a chamar-se de teatro pós-dramático. Um teatro que, embora afirmando a palavra, rejeita o automatismo de a dizer por dizer, em favor de uma relação militantemente presencial. “A presença, sempre a presença”, repete Etchells: “Os anos 1980 foram, para nós, a rejeição da palavra falada. Não queríamos usar a palavra enquanto instrumento da linguagem, mas provocar um confronto violento que desafiasse a palavra nos seus próprios termos. [Entretanto] mudámos grandemente a nossa perspectiva sobre o texto, que rejeitávamos, e abraçámos um desejo de trabalhar com a linguagem enquanto portadora de desafios.”

Em As Festas de Amanhã, A Tempestade que Aí Vem (Culturgest, 19 a 21 Março), E à Milésima Noite… (Culturgest, 22 Março), mas muito particularmente em Void (Novembro), a forma como a palavra pode existir em palco e como, através desse preceito intencional, as palavras, pelo seu poder simbólico, podem constituir-se como imagens e, em alguns casos, potenciar o surgimento de personagens, lança pistas para os modos de produção de uma companhia que “quer tornar viva a linguagem”.

Tim Etchells diz que é possível, hoje, observar no discurso da companhia um caminho de adaptação, mudança e condução dessa experiência, e que isso se deve a uma tomada de consciência de que o confronto é hoje de outra ordem. “Quando trabalho num texto, seja para uma peça, uma coreografia ou uma instalação visual, a relação que estabeleço com a palavra — e que é igual como autor e como espectador (da minha obra) — é directa e não mediada pela presença de outra pessoa”, diz. Ou seja, uma das chaves para a interpretação do trabalho de Etchells e do colectivo Forced Entertainment não está no modo como convida o espectador a entrar em cena, mas como assume que ele já lá está desde o início. No palco. Como um cúmplice. Com eles, e não ao lado (ou à frente) deles.

Tal como vai ao encontro dos espectadores, o texto vai também ao encontro dos intérpretes, que invariavelmente usam os seus próprios nomes nas peças — tornando-se, com o tempo, personagens do seu próprio percurso artístico —, como speaking subjects. E também como actos de enunciação, exibindo “o que nos acontece quando dizemos uma determinada palavra, como é que isso nos constrói, se reflecte em nós e nas relações que se estabelecem com o público”. Daí a relação com a cidade ser tão importante. Pela necessidade de resistir, como demonstraram numa Sheffield devastada. Ou agora em Lisboa, num exercício de harmonização de programações concorrentes através de um nome que põe em causa as próprias instituições.

O programa que ontem começou no Maria Matos completa-se, até ao final do ano, com duas encomendas. Uma para a Companhia Maior, encenada por Jorge Andrade (Novembro, CCB), a outra a desenvolver ao longo de 2014, com e para adolescentes, no âmbito do projecto PANOS — Palcos Novos Palavras Novas, da Culturgest.

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