Thomson light

Um acontecimento cinéfilo: o primeiro livro de David Thomson publicado em Portugal.

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Pode parecer chocante que David Thomson, uma das pessoas mais interessantes a escrever sobre cinema nos últimos cinquenta anos, nunca tivesse sido traduzido para português de Portugal até agora. No entanto, era só um entre um sem número de autores ligados à sétima arte (os quais incluem Pauline Kael e Serge Daney) esquecidos pelas editoras portuguesas, já de si tão pouco dadas a publicar seja o que for sobre a temática (e as excepções continuam a ser em grande medida teses académicas, com diversos graus de interesse e inteligibilidade). Portanto, os tímidos sinais em sentido contrário, seja a edição, no ano passado, do famosíssimo Os Filmes da Minha Vida de François Truffaut pela Orfeu Negro, seja a deste Como Ver Um Filme, pela Bertrand, são de aplaudir.

Também é louvável que no caso de David Thomson a escolha tenha recaído sobre o seu último livro, cuja edição original tem poucos meses, ainda mais comparando-se com o “atraso” de mais 40 anos no que toca à obra seminal de Truffaut. Tão louvável quanto discutível: traduzir A Biographical Dictionary of Film, a gigantesca enciclopédia (já na sexta edição revista) pelo qual o autor inglês se celebrizou e influenciou, por exemplo, a escrita de João Bénard da Costa, talvez fosse uma empreitada demasiado complicada, mas haveria, porventura, outras obras suas mais merecedoras de atenção do que Como Ver Um Filme, tais como Beneath Mulholland: Thoughts on Hollywood and Its Ghosts, The Whole Equation: A History of Hollywood ou o recente The Big Screen: The Story of the Movies.

Quando mais não seja por Como Ver Um Filme surgir como uma versão mais leve e simplificada desses mesmos livros, repetindo alguns dos temas – o poder decrescente do cinema; o acesso quase ilimitado a todos os filmes a qualquer momento (mesmo se, às vezes, em más condições) em contraponto com a dificuldade em rever um filme antigamente; a diminuição do tamanho dos ecrãs e a consequente redução da atenção dos espectadores, dividida por mil solicitações e hiperligações; a desconfiança em relação às fantasias cinematográficas; e a certeza quanto à vulnerabilidade do comum dos mortais face aos actores, sedutores e inalcançáveis – numa prosa mais didáctica e menos extravagante do que o habitual (e também muito mais esperançosa e apaziguada do que o costume: chega a congratular-se com a fragmentação da imagem, motivo de grandes angústias em The Big Screen). Não é que David Thomson se proponha, de facto, a “ensinar a ver um filme” (o título é sobretudo uma provocação). Segundo escreve, pretende, antes, despertar no espectador um olhar crítico (não necessariamente de crítico), partindo do pressuposto que “o acto de ver faz parte do próprio conceito de cidadania”. 

Para isso, serve-se de pequenos exemplos, como o de tirar uma fotografia à namorada para enviar aos pais, demonstrativos de como uma simples alteração na iluminação, na indumentária, no cenário pode mudar uma imagem, um filme inteiro. De resto, cada capítulo de Como Ver Um Filme isola, identifica e explica diferentes elementos do cinema, de modo a melhor o analisar: num dedica-se ao enquadramento, noutro à montagem, passando pela banda sonora e pelo argumento. Thomson estrutura o seu livro como se fosse uma dessas obras instrutivas com que o título brinca, restringido, assim, o delírio especulativo costumeiro – patente no momento em que imagina Obama a ver The Equalizer – Sem Misericórdia e a reconhecer no ecrã a sua vontade de destruir os inimigos políticos dos Estados Unidos da América sem dar cavaco a ninguém.

Percebe-se esta preocupação de David Thomson com o espectador, segundo o próprio, o derradeiro autor de qualquer filme, no que é talvez uma auto-justificação para os tais devaneios pelos quais gosta de se deixar levar. Mas é, paradoxalmente, a falta destes que se lamenta. Contudo, o pobre não deve ser mal agradecido: o primeiro livro de Thomson publicado em Portugal, numa tradução tão bem conseguida (e é dificílimo passar para outra língua o estilo meio enigmático e cheio de meia palavras do escritor), será provavelmente o grande acontecimento editorial para os cinéfilos portugueses este ano. 

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