Thelma Schoonmaker, a mulher que ajuda Scorsese a esbofetear o espectador

Três Óscares tem já a montadora pelo seu trabalho com Scorsese. Vai ser homenageada na terça-feira à noite no Festival de Veneza com um Leão de Ouro à carreira.

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A montadora de Martin Scorsese é homenageada na terça-feira à noite no Festival de Veneza com um Leão de Ouro à carreira AFP

“Misterioso” sim, mas definitivamente “não invisível”. O espectador de um filme, a maior parte das vezes, nem compreende o que se está a passar, concentrado que está na história, nos actores, no guarda-roupa, talvez até a reparar na iluminação. Mas a um determinado momento pode ser sacudido por um plano, levando com ele na cara. Alguém quis que o espectador o visse mesmo e esbofeteou-o.

Montagem: misteriosa, sim, essa possibilidade de esculpir o informe; mas Thelma Schoonmaker e Martin Scorsese não querem que seja invisível, e é isso o que diz a colaboração entre os dois, constante desde uma obra-prima do cinema americano chamada O Toiro Enraivecido (1980). A montadora de Martin Scorsese é homenageada na terça-feira à noite no Festival de Veneza com um Leão de Ouro à carreira, numa cerimónia em que, adiantou, irá mostrar aquele que considera o momento exemplar e culminante do seu trabalho com Scorsese e o ponto de rebuçado da energia criativa do realizador: a sequência do combate entre Jake La Motta (Robert de Niro) e Sugar Ray Robinson, no Touro Enraivecido, em que a brutalidade do ringue ficou explícita nas imagens, ao contrário do que propunham os iniciais e detalhados desenhos de Scorsese, pelo bailado reactivo, cabeça abaixo para tapar os olhos, cabeça levantada para enfrentar a carnificina, da personagem de Vicky La Motta, a mulher de Jake (interpretada no filme por Cathy Moriarty).

Thelma destaca essa capacidade de Scorsese de ouvir uma outra versão das coisas. Começa por construir da forma que pensa que Scorsese “viu”, “porque ele tem direito a isso, é o filme dele”. Mas depois há duas ou três versões alternativas que ela lhe apresenta. “Sem choques de ego”, o trabalho é de colaboração.

Três Óscares tem já Thelma Schoonmaker pelo seu trabalho com Scorsese: O Toiro Enraivecido, O Aviador, The Departed. Não é a sua montadora privada, brinca, mas dado que aprendeu “tudo com ele” e ele “é o maior realizador do mundo” não há razão para se afastar do top da sua profissão e deixar de continuar a caminhar com ele pelos desafios de cada filme. Exemplifica, por exemplo, como em A Idade da Inocência, vindo ambos do ritmo dos filmes sobre a Mafia, tiveram “de abrandar” e como Scorsese fez de forma diferente um outro filme intoxicado pela violência: desta vez as regras sociais à volta da relação entre Michelle Pfeiffer e Daniel Day Lewis seriam tão perniciosas como os golpes dos Goodfellas. O novo Silence, adianta, que está em pré-produção, história de jesuítas no Japão do século XVII, vai ser também outra história.

Nada levaria, à partida, Thelma Schoonmaker, nascida em Argel em 1940, para o cinema. A sua coisa eram as Ciências Políticas e a ambição de seguir carreira diplomática. Mas as suas posições “liberais” puseram-na fora de sintonia com o Departamento de Estado norte-americano e a precisar de procurar soluções alternativas para a carreira diplomática. Um curso no departamento de cinema da New York University, “de seis semanas apenas, tudo o que podia pagar”, colocaram-na no sítio certo e no tempo certo: foi o Verão em que conheceu Scorsese. Que lhe pediria ajuda para resolver um problema de um negativo que tinha sido estragado pelo laboratório, que lhe apresentou as pessoas do cinema-verité e do documentário (trabalharia no Woodstock, de Michael Wadleigh, em 1970). Foi essa experiência, assinala, que a preparou para a torrente de material e de improvização que iria jorrar do seu trabalho com Scorsese, e volta a mencionar Touro Enraivecido e as interacções entre DeNiro e Joe Pesci.

Um filme, já agora, que é como é – a preto e branco – por causa de Michael Powell (1905-1990), o cineasta britânico que Scorsese amava, que foi resgatar ao esquecimento a Inglaterra, e que se tornaria o marido de Thelma Schoonmaker. Foi durante a preparação de Raging Bull, quando Scorsese coreografava com DeNiro as cenas de boxe, que o realizador de The Red Shoes teria comentado que as luvas vermelhas que o actor envergava produziam um efeito estranho. Sim, concordou Scorsese, o filme iria ser a preto e branco. O outro conselho de Powell não foi seguido - o de que DeNiro não deveria fazer a sua dieta de engorda e que as marcas do tempo, como em The Life and Death of Coronel Blimp (1943), deviam ser interpretadas pelo actor com a ajuda de adereços.

E quem ganha quando Thelma e Marty não estão de acordo? A montagem é a gramática do cinema, mas ela não poderá esclarecer quem tem a última palavra. Tudo se desenrola a conversar, sobre a vida, sobre Michael Powell, e até sobre o Papa. No fim, talvez ganhe algumas vezes o ecrã da televisão sintonizado sem som no canal Turner Classics, na parede do lado direito do gabinete onde Schoonmaker e Scorsese montam os filmes: um plano de um clássico que irrompe sem se anunciar, como uma solução do milagroso cinema a preto e branco que Scorsese venera, pode tomar por eles a decisão. Foi nesse gabinete que Michael Jackson entrou duas ou três vezes, “de máscara e com as luvas brancas”, para dar uma olhadela à montagem do videoclip de Bad e pedir mais planos gerais para se destacarem as suas coreografias. Mas Scorsese fazia muita questão nos seus movimentos de câmara e Michael “não levou nada”.

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