Terra de ninguém

Um périplo pelo centro da Austrália, uma viagem política e histórica por um continente que se pretendia ser de ninguém

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Lindqvist averigua da “História branca” da Austrália e do passado que foi sendo apagado DR

A expressão latina Terra nullius (terra de ninguém) tinha o significado original de “terra que não pertence ao Império Romano”. Mais tarde, e durante a Idade Média, passou a significar um território que não pertencia a um soberano cristão. E no século XIX passou ao estatuto de conceito jurídico usado para justificar a ocupação europeia de partes de alguns continentes, mas foi “particularmente comum na defesa da ocupação britânica da Austrália”. Quem o diz é o sueco Sven Lindqvist (n. 1932), autor de mais de 30 volumes, entre reportagens, romances, e sobretudo livros de viagens — é da sua autoria o célebre Exterminem Todas as Bestas (Caminho, 2005), em que interroga o colonialismo europeu em África, em especial no antigo Congo belga, o coração das trevas de Joseph Conrad.

Desta vez, Lindqvist percorreu o centro do continente australiano e Terra Nullius é o relato desse périplo de 11 mil quilómetros; mas, muito mais do que isso, é também, e sobretudo, uma viagem política através da História australiana, de como o continente se tornou numa “província branca” do Império Britânico — tendo começado como uma espécie de “depósito” penal. Fá-lo expondo o genocídio escondido do povo aborígene, a “invasão britânica” que aniquilou cerca de nove décimos da população original. A criação da Austrália dependia dessa “ficção jurídica” que era o terra nullius, o território que tem de ficar despovoado porque é ocupado por “raças inferiores” que pelas leis da natureza estão “condenadas a desaparecer”. 

Sven Lindqvist toca num assunto bastante melindroso e discutível, a questão da “culpa colectiva” de um povo e do seu dever de pedir desculpa pelo que foi feito por outros no passado. A sua resposta é afirmativa, mas as perguntas só são explicitamente colocadas nas últimas páginas do livro. “Existe de maneira geral culpa colectiva? A culpa colectiva pode ser herdada? (…) Pode uma dívida moral implicar igualmente responsabilidade de pagamento?”

A viagem de Lindqvist não se limita a averiguar da “História branca” da Austrália, o seu violento passado, mas também a tentar encontrar vestígios (etnográficos, artísticos…) do passado que foi sendo sucessivamente apagado. (“O passado não é um lugar tranquilo”, refere Carlos Vaz Marques no prefácio a esta edição.) Ao longo desse périplo, surgem também notícias de factos chocantes, bastante recentes em termos históricos — a segregação manteve-se ao longo do século XX —, como a história de Millicent, nascida em 1945, filha de pais “mestiços”: como tinha a pele clara, foi retirada à família e levada para um orfanato onde lhe diziam que iria ser educada como os brancos, “num bom ambiente religioso”; aos 16 anos foi enviada para uma fazenda como empregada doméstica, sendo que entre as suas obrigações o patrão esperava também os serviços sexuais... A juntar a estas histórias de crianças “mestiças” retiradas aos pais por ordem do Estado e dadas para adopção (de modo a perderem a identidade indígena), há as dos nativos postos a ferros e enviados para campos em ilhas remotas, bem como as de jovens aboríngenes que, sem motivos aparentes, continuam a morrer sob custódia policial.

A paisagem australiana não é esquecida por Lindqvist, que por vezes parece perder-se numa espécie de tentativa de expiação do “remorso do homem branco”. Uma das melhores referências à paisagem é esta: “É a planura que nos faz crer que a Austrália é feia e vazia. A planura mantém-nos reféns entre os arbustos. Mas logo que a estrada se eleva um pouco e permite uma visão sobre o canto do matagal, abrem-se paisagens fantásticas.”

Terra Nullius

 é um livro comovente, escrito numa prosa escorreita com alguns momentos altos, que faz escavação de um passado escondido ao mesmo tempo que ilumina a história de como uma “terra de ninguém” se pode transformar numa terra do “homem branco”.

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