Terna e familiar é a Bahia de Moreno

Moreno Veloso mostrou no São Jorge, em Lisboa, o que vale o seu disco a solo, Coisa Boa. O título fez jus ao espectáculo, com um senão: as falas quebraram o ritmo.

Foto
Moreno Veloso no palco do São Jorge, na noite de 8 de Maio Nuno Ferreira Santos

Leve, familiar, envolvente, o concerto de Moreno Veloso em Lisboa só pecou pelo excesso de falas do cantor entre canções, numa desnecessária quebra de ritmo. O novo disco, Coisa Boa, e o que musicalmente se lhe juntou, tudo isto bastaria para justificar os muitos aplausos. Sem mais.

Mas, na noite de 8 de Maio, no São Jorge (com a sala ocupada a mais de metade), Moreno esteve como se estivesse na sua sala de estar, perante visitas. Contou histórias, demorou-se nelas, repetiu por vezes o que não precisava repetir, mas quando retomava o canto dissolvia-se essa sensação de interlúdio. O concerto, que além de Moreno (voz, violão e pandeiro) contou com Bruno di Lullo (baixo), Rafael Rocha (bateria, percussão e vozes) e Rodrigo Bartolo (guitarra e vozes), começou aliás bem ritmado, no embalo tipicamente baiano de Um passo à frente, um dos temas mais dançáveis do novo disco. Jacaré coruja, num tom quase infantil, deu espaço a um tema do primeiro disco que Moreno gravou, como líder do grupo +2 (de liderança rotativa, com Kassin e Domenico Lancelotti), Máquina de Escrever Música. O tema foi Das partes, e confirmou-se uma boa escolha para fazer a ponte entre Jacaré coruja e os novos Verso simples e De tentar voltar.

Até que Moreno se espraiou na história de uma canção partilhada no Brasil com um outro cantor e demorámos a saber de quem se tratava. “O nome dele é António Zambujo e ele é o meu herói”. Zambujo estava na sala, acedeu ao convite de subir ao palco e cantaram juntos Coisa boa (tema que dá título ao disco). Só não foi perfeito porque, no final, Moreno não apanhou a tempo a deixa de Zambujo para terminar a canção. Mas foi, pelo menos, satisfatório no campo das emoções, com Moreno a sublinhar com a sua voz a beleza intrínseca da canção e Zambujo a puxá-la bem ao seu estilo, expondo o que nela havia de português (apesar de ser deliciosamente brasileira).

Mambeado, do argentino Nacho Rodriguez, soou num espanhol aceitável; e Rosa, que Nenung (do grupo Darma Lovers) compôs para a filha de Moreno, brilhou terna na noite. Como tudo ali parecia familiar, e aconchegado, veio depois a antiga Num galho de acácias (que, sendo francesa, Un peu d’amour, teve versão e difusão brasileira nos inícios do século XX). Mais família: Dona Canô, mãe de Caetano, cantava-a para os netos. Moreno aprendeu-a desse modo. E ainda bem.

Nem de propósito, a canção seguinte (Lá e cá, que abre o disco) começa assim: “Vez em quando eu me pego sozinho a cantar/ uma melodia pra me ninar”. Há uma sombra de infância a pairar sobre Coisa Boa e sobre o espírito musical de Moreno, isso é visível, mas é memória futura, não saudosismo. Ele olha os seus pares, família, filhos (Rosa e José) e tem a Bahia e o Brasil pela frente. O passado, aqui, ressoa como nas doces composições de, por exemplo, Márcio Faraco.

E o futuro pode passar pelo Japão (o dele passou, foi lá que se estreou a solo num palco). Onaji sora, canção composta em parceria com a japonesa Takako Minekawa, e cujo título quer dizer, em português, O mesmo céu, é outra das pérolas do novo disco. E Moreno cantou-a em japonês. Depois, para a Bahia não ter ciúmes, pegou numa faca e num prato e, com o embalo dos sambas de roda baianos, cantou a festiva Não acorde o neném, partindo daí para outra festa que na Bahia (e sobretudo na família de Moreno) tem culto garantido: a de Santo António. Moreno e os músicos cantaram e tocaram então Noite de Santo António, de Raúl Ferrão e Norberto de Araújo, grande marcha de Lisboa de 1950, gravada e muitas vezes cantada por Amália Rodrigues.

Como se estava em maré de outros sons, Moreno deixou o público com uma canção composta e cantada pelo baterista Rafael Rocha e que foi gravada pelo grupo Tono (ao qual pertencem ele e o baixista Bruno di Lullo) no disco Aquário, em 2013. Um bom balanço, com recepção a condizer.

Depois, já a fechar, vieram Em todo lugar (mais uma bonita canção do novo disco), Arrivederci (de Máquina de Escrever Música) e, com Moreno no pandeiro, Ilê de luz, do bloco afro Ilê Ayê, que teve no palco do São Jorge uma muito boa interpretação, iluminada e com verdadeira garra.

O encore, com parte considerável da sala a aplaudir de pé, manteve-se nos blocos e em família. Primeiro, Deusa do amor (do bloco Olodum) e Leãozinho (do pai Caetano), ao qual Moreno nada acrescentou de musicalmente seu, para lá do genuíno sentimento. Por fim, no segundo regresso ao palco, o Ilê Ayê foi de novo fonte benigna: Corpo excitado fez vibrar a sala na despedida.

De um disco que parece, todo ele, inspirado numa canção de embalar terna e intemporal (disco que, aliás, se recomenda), Moreno Veloso fez um espectáculo à medida, que seria ainda melhor com uma maior contenção do verbo. As canções soam, quase sempre, melhor do que as conversas.

Sugerir correcção
Comentar