Terminar esculturas

O Outono acontece a Genebra como uma excentricidade amorosa. A cidade ajardinada assiste ao nevoeiro do lago tingindo as árvores como se crianças ou os apaixonados decidissem o mundo.

As copas são garridas, coisas entusiasticamente pintadas a mexer com o céu. Novelos de lã verde, amarela, vermelha, há até uma árvore azulada, ou roxa de uma maneira intermédia, a fazer intensamente o ruído de uns pássaros que não consegui ver.

O Outono de Genebra fica por todo o lado mas define-se nos pormenores. Presta atenção a cada detalhe, folha a folha desenhada com original precisão. Não sou o único a escolher obras de arte de entre as folhas mortas. As árvores não perdem folhas, elas terminam esculturas. Soltam-nas como artistas geniais que expõem pelo chão. A cidade transforma-se numa galeria gigante. Passamos em visita à manifestação cultural da própria natureza. Encontramos a sua própria inteligência.

Percorro o caminho das árvores mais velhas e noto como cicatrizaram dramaticamente os cortes, ramos que tombaram cedo, fracturas de agressões diversas. São cicatrizes ostensivas, como adornos grotescos nos corpos mais que elegantes das árvores. Ao contrário de parecerem perdas de membros, são como erupções, conflitos interiores que problematizam a calma tão antiga das árvores.

Se olharmos para cima, para os intrincados milhares de galhos que as árvores baralham, o despido deles cria uma misteriosa caligrafia. Persigo os sinais caligráficos das árvores. Adoraria saber o que me escrevem na página hoje pálida do céu. Creio que os suíços sabem que é importante, nos jardins, olhar para cima. E há sempre outros pássaros, como corvos espiando, que as mais das vezes apenas ouvimos. Num universo de copas tão colorido, é normal que percamos a capacidade de ver os ínfimos corpos voadores quando ali pousados. Pousam em gigantes vestidos de festa. Os pássaros que não partiram pousam em gigantes vestidos de festa.

Está frio. Este Outono de Novembro já é feito do frio de um Janeiro no Porto. Mas não está a chover e parou o vento. As coisas ficam apenas sossegadas. Paradas, como se entregues à sua vontade. Há um moço a ler livros na margem. Digo livros porque os tem espalhados na mochila aberta. Talvez tenha pressa daquela calma. Tem pressa da experiência daquela calma. Precisa de ler tudo ali, para a memória especial de ser um leitor naquela margem, imerso naquela cor, como se fizesse parte de uma obra plástica que urgisse na capacidade de alguém permanecer. Se Genebra fosse um quadro, certamente exigiria que aquele rapaz estivesse naquele bocado de pedra só parcialmente quieto. Os mesmos livros espalhados, uma biblioteca portátil como uma memória instruída do corpo das árvores. Os livros são uma instrução do corpo das árvores.

Estou sempre à procura de um museu qualquer. Vou indeciso entre querer e não querer chegar. O frio empurra, o resto atrasa.

Subitamente, uma árvore enfeitada põe-se a sorrir num cruzamento onde param os carros à espera do sinal verde. Penduraram-lhe lanternas chinesas. Uma espécie de coisa do Natal ou transformação da árvore em casa feita de falhas. Fica belíssima na sua vaidade. Está como com brincos por toda a parte. Pendentes desencontrados que devem ter sido colocados à sorte mas sem o risco do erro. De todo o modo, as árvores adornam-se sem recorrer ao espelho. A vaidade haverá de ser-lhes uma maturação interior. Observam-se pelo interior.

No belíssimo museu Ariana, o apalaçado espaço abre janelas sobre os jardins. Sempre as árvores, imóveis e mudas, marcam presença como superiormente impostas ao catálogo das porcelanas e das faianças. As portadas escancaradas plantam as árvores dentro do palácio. Elas conseguem crescer sem deitar abaixo um prato, sem arranharem um nico dos jarrões. Ficam as árvores muito melhor comportadas do que elefantes. Maiores e muito mais educadas. Que é o que verdadeiramente nos impressiona.

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