Teoria e crítica

Um discurso criativo, e às vezes críptico, sobre o cinema

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Adrian Martin interessa-se pelos encontros fortuitos do cinema, como o das personagens de Ava Gardner (Maria Vargas ) e Humphrey Bogart (Conde Torlato-Favrini) em A Condessa Descalça DR

A Punctum Books é uma pequena editora nova-iorquina criada por Eillen A. Joy de modo a escoar aquele tipo de obras que, por ser demasiado especulativo, “criativo”, excêntrico, subversivo e pouco institucional, não cabe nas publicações académicas. Assim afirma o crítico de cinema australiano Adrian Martin numa entrevista disponível no Vimeo, a propósito da publicação do seu texto Last Day Every Day: Figural Thinking from Auerbach and Kracauer to Agamben and Brenez pela referida editora. Segundo Martin, Last Day Every Day jamais passaria pelo crivo académico e, por isso, jazia no seu computador há alguns anos já.

Mesmo um leigo em teoria fílmica entende porquê. Last Day Every Day trata de um conceito que, por definição, é indefinível, instável, mutante: a figura. Adrian Martin encontrou-o mais de cem vezes ao traduzir um livro de Nicole Brenez sobre o cinema de Abel Ferrara, sem compreender precisamente o uso que a autora lhe dava. Mesmo depois da leitura de escritos de Paul Ricœur, Siegfried Kracauer, Eric Auerbach e Giorgio Agamben à volta da “figura” e da “análise figural”, a dúvida não se dissipou, nem poderia dissipar-se. A plasticidade do conceito, tanto na sua definição como no seu uso, não lhe permite que adopte uma forma definitiva, sendo só possível abordá-lo por aproximações. Ora, o problema do leitor (o leigo em especial) é exactamente esse. Por virtude do tema, o texto de Martin — para mais, extremamente pessoal e algo intransmissível — é sempre demasiado elusivo, esquivo, escorregadio.

Último Dia Todos os Dias e Outros Escritos Sobre Cinema e Filosofia

, também editado pela Punctum Books (e disponível para 

download

 gratuito no 

site

 desta), em colaboração com o Centro de Estudos Comparatistas da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (através do projecto de investigação Falso Movimento), reúne as traduções de Rita Benis de 

Last Day Every Day

Avatars of the Encounter

, também de Martin, e um texto de Cristina Álvarez López sobre 

Last Day Every Day

 para a

Screening the Past

 (revista da qual Martin é editor), 

Figures in a Garden: The Domino Effect

, que serve, para todos os efeitos, de prefácio ao livro.

Quando mais não seja, Álvarez López abre uma porta de entrada a Last Day Every Day (que a citada entrevista a Martin escancara). Adrian Martin propôs-se escrever uma história da “figura”, uma narrativa composta por um encadeamento de citações dos autores atrás referidos (Kracauer, Agamben, Brenez), pela ordem em que chegaram até ele. Como explica Martin, é uma espécie de performance que aproveita os preceitos da “análise figural”: a palavra de cada autor comenta a anterior e prevê a seguinte (o efeito dominó do texto de Álvarez López). Ou seja, neste caso, as citações são as figuras. Para se tentar entender um pouco melhor a ideia de “figura” para Martin (pelo que se percebe de uma troca de e-mails, em post scriptum, um pouco diferente da de Nicole Brenez), pegue-se num exemplo dado pelo autor, o filme O Anjo Azul, de Josef von Sternberg. Antes, Martin considerava-o um produto típico do período entre mudo e o sonoro, muito preso de movimentos devido ao peso da câmaras e à ditadura dos microfones. Vendo-o outra vez, aos olhos da análise figural, deu-se conta finalmente (ou intuiu: Martin profere amiúde a palavra serendipitous, este tipo de conhecimento envolve a sorte e o acaso) das intenções do realizador. Os estereótipos (a mulher fatal, o professor babado) eram figuras postas em cena com a sua rigidez. Deste modo, o enredo previsível era tão-só outra figura. Assim como os movimentos de câmara de von Sternberg. A “análise figural” é uma forma de interpretação (Martin ressalva a necessidade de catalogar, de nomear) sobretudo visual, anti-realista, anti-verosimilhança, anti-psicológica (anti-narrativa). Na tal entrevista, Martin lança uma noção interessante: a “análise figural” leva-o a ver qualquer filme como se de desenhos animados se tratasse.

O outro texto de Último Dia Todos os DiasAvatares do Encontro, é menos críptico ou, pelo menos, mais apreensível por qualquer cinéfilo, na maneira como toca mais de perto o cinema. Adrian Martin traça duas lógicas narrativas na sétima arte: a convencional, em que para um efeito há uma causa; e outra, mais onírica, ditada pelo ambiente, pelo estado de espírito, pelos presságios das personagens. É esta que lhe interessa, a dos encontros fortuitos, como o da actriz Maria Vargas (Ava Gardner) e do Conde Torlato-Favrini (Humphrey Bogart) em A Condessa Descalça, de Joseph L. Mankiewicz, fatal e funesto. Avatares do Encontro lembra os ensaios audiovisuais que Martin e Cristina Álvarez López vão lançando com frequência, estando, pois, mais próximo da crítica (uma crítica criativa, talvez), enquanto Last Day Every Day é quase só teoria (criativa também), bem mais árido, por muito que o autor cite um filme ou outro. De qualquer modo, com cerca de 70 páginas, O Último Dia Todos os Dias nunca custa a ler, nem é propriamente denso, suscitando pensamentos estimulantes, mesmo quando não se atinge tudo o que autor pretende dizer (ou por causa disso).

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