Teatro para um reino em perigo: este em que vivemos

Thomas Jolly fez o que raramente se pensou possível fazer: Henry VI, de Shakespeare, em versão integral. Um maravilhoso festim de 18 horas (18 horas!).

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CHRISTOPHE RAYNAUD DE LAGE/FESTIVAL D'AVIGNON

São 3h23 da manhã e não há ninguém encostado às costas da cadeira. Os 700 espectadores da La Fabrica, o novo espaço do Festival de Avignon, bebem as palavras do futuro Ricardo III, corpo de Peter Pan em mente perversa. Vão ser anos de espera e anos de chumbo, avisa. E depois de ele quase dizer, como se costuma dizer nas verdadeiras sagas, que ainda nos vamos encontrar, vira os cartões que escrevem a palavra FIN (“fim”). A sala rebenta num aplauso que se prolongará por mais de 15 minutos.

Passaram 18 horas desde que a sala se encheu para a primeira apresentação integral de Henry VI, épico em três peças de William Shakespeare que atravessa 50 anos da história de Inglaterra e que Thomas Jolly, um encenador de 32 anos praticamente sem meios quando há quatro decidiu avançar para esta empreitada, transformou naquilo que o jornal Le Monde apelidou de “monstro alucinado”. Um Evereste conquistado a partir do esforço de 21 actores e ainda menos técnicos, perante uma plateia seduzida hora após hora, como se assistisse aos episódios de uma série de televisão. Ou a Guerra das Rosas no teatro, em tempos de Guerra dos Tronos no pequeno ecrã ou no computador — onde também poderá ser visto integralmente, até Janeiro do próximo ano (em Culturbox.francetvinfo.fr
live).


Aqui o texto vive pelo corpo de actores que resgatam da memória do próprio teatro o seu lado lúdico e se oferecem em todo o esplendor a um jogo de cadeiras que é, afinal, a construção do músculo de um país. “Henry VI descreve 50 anos da história de uma nação que se destrói, que se consome até ao momento em que no trono se senta um monstro.” Composta por dois ciclos de oito horas e meia, contendo dois episódios cada um, por sua vez subdivididos em duas partes, o monumental texto de Shakespeare é um gesto premeditado de compromisso com a memória, chamando os espectadores à arena da retórica e perguntando-lhes por que se batem e o que defendem. Os títulos de cada episódio revelam um desejo de acentuar a dimensão poética e, através dela, a dimensão política: A demanda de Marte, em que Henrique V morre e o reino se começa a desfazer; Festim de morte, em que York se rebela contra o novo rei enquanto Joana d’Arc conduz os franceses contra os ingleses; A roda da sorte, em que Suffolk convence Henrique VI a casar com Marguerita, construindo, na cama do rei, o seu próprio veneno; O lamento de Mandrágora, em que os conselheiros do rei são acusados de traição; A peste das trevas, em que a anarquia toma conta de Inglaterra; A fome da serpente, em que a ganância das famílias rivais leva o país à guerra civil; Sangue púrpura, em que o rei é deposto e a casa de York reclama para si a coroa; O Inverno do descontentamento, em que Ricardo III se revela. É como escreveu Shakespeare: “Céus, tinjam-se de negro/ Dias, dêem lugar à noite”. E, depois, recomeçar.


Thomas Jolly demorou quatro anos a conseguir montar esta epopeia, episódio atrás de episódio, com meses e anos de intervalo, num gesto de resiliência que agora começa a dar frutos. “Muito pesado, muita gente, muito caro”, foram-lhe dizendo. E ele, ano após ano, a dividir 150 personagens por 21 actores. Antes fizera Arlequin poli par l’amour, de Marivaux (2007), Toâ, de Sacha Guitry (2009) e Piscine (pas d’eau), de Mark Ravenhill (2011). Depois — e isso sente-se no seu olhar, amadurecido aos nossos olhos em 18 horas que são quatro anos de vida — aproximou-se de autores como Fausto Paradivino e Victor Hugo, de encenadores como Ariane Mnouchkine e Stanislas Nordey, e trouxe consigo o que aprendeu com Claude Régy. Este ano tornou-se artista associado do Théâtre National de Bretagne e no próximo será convidado do Théâtre National de Strasbourg. São percursos que levarão a sua companhia,  La Piccola Familia, ao encontro de um outro público, afastado do mediatismo das grandes cidades. Um público a que ele quer dirigir-se, sem filtros.


Em Avignon, Henry VI fez três apresentações (21, 24 e 26 de Julho) sob ameaça de greves, sob o protesto dos intermitentes, desafiando a chuva e as ameaças de paragens. No fim, às quatro da manhã, tal como ao longo de todo o dia, entre cada paragem, antes de mais um estirar de pernas, um gole de café e uma sandes, abrindo as lancheiras e partilhando bolos, o público recusava o fim de uma ideia de comunidade. Havia quem trouxesse o texto para ler nos intervalos. Havia quem comentasse ser como assistir a uma temporada inteira de uma série. Havia quem não acreditasse ser possível ninguém ter dormido e poderem contar-se pelos dedos de duas mãos aqueles que se tinham ido embora.


“Poderíamos pensar que nesta época de individualismo orgulhoso, de consumismo desmesurado, de uma velocidade crescente e de uma virtualidade surpreendente, o teatro seria um objecto de puro entretimento e divertimento. Não é verdade. O teatro, embora tenha perdido a sua força de convocação e de união popular, não a perdeu se não por oposição a outras artes e outras práticas com mais força e presença mediática e, portanto, económica.” Jolly chama então a si uma ideia de teatro de efeitos expostos, sem artifícios que não aqueles que os actores consigam transportar, usando a palavra para criar imagens e adereços rudes para potenciar situações. Apela à imaginação porque dela depende o compromisso. E faz do acto de ver uma ética de cidadania.


Um presente maior


Escrevia a Les Inrocks que “Thomas Jolly (...) cria com o público uma relação de cumplicidade que releva de uma alquimia rara”. “Não é frequente verem-se espectadores tão entusiasmados”, continua a revista, e é verdade. “A engenhosa encenação tira proveito de múltiplos detalhes divertidos, sejam a genealogia que os vários pretendentes ao trono usam como argumento, os tacos de golfe que servem de espadas, ou as cabeças decepadas que se exibem a cada oportunidade. Sem esquecer as divertidíssimas intervenções de uma mestre-de-cerimónias de língua pronta que cria com a sala uma relação de tal modo eficaz que cada uma das suas aparições é recebida com gritos de alegria.”


Entretanto, no Le Monde, um esforço para lutar contra a embriaguez entusiasmada que a todos tocou: “Apesar dos seus defeitos, das suas falhas, avança-se sem oposição, porque há qualquer coisa que se conquista, que evade a banalidade do tempo e nos mergulha na juventude, na frescura e no sentido de teatro excepcional da infância de Shakespeare.” É um prazer efectivamente infantil, que renova — quase poderíamos dizer, no final de um festival tão morno: que refunda — a ideia de comunidade. É verdade que Avignon já viu outras maratonas em anos anteriores, algumas delas inscritas na história do festival, como Le Mahabharata, de Peter Brook, em 1985 (nove horas), Le Soulier de Satin, de Antoine Vitez, em 1987 (12 horas), La Servante, de Olivier Py, em 1997 (24 horas), e mais recentemente, em 2009, a trilogia Littoral, Incendies, Forêts, de Wajdi Mouawad, em 2009 (11 horas). Mas há em Henry VI, talvez por ser um texto que nos reconcilia com a ambição de demanda, uma euforia justificada. Virá a relação empática de uma outra noção de temporalidade, provocada pela féerie das séries de televisão? Ou será antes a exposição de um teatro feito ali, sem outros gestos escondidos que não os das estratégias das personagens, que seduz e enfeitiça? Depois dos últimos aplausos, ouvimos três adolescentes, daqueles que nunca imaginaríamos no teatro e para os quais se fazem projectos de aproximação e integração cultural e social, dizerem, sem pejo: “Quero voltar a ver.”


Thomas Jolly, confesso amante de séries de televisão, assume ter construído a epopeia a partir do suspense, “colocando os intervalos em lugares estratégicos”. Mas é mais do que isso; se não fosse, nas cenas que normalmente são cortadas, as que não mostram a dor da orfandade nem se desfazem em sangue, o fôlego dramatúrgico seria insuficiente. E não é. Não se fazem 18 horas de espectáculo (mesmo que apenas 13h delas se passem de facto em cena, uma vez que cinco correspondem a intervalos) sem um olhar claro. Um olhar que demora a construir-se, indo assim ao arrepio da velocidade de que falava o encenador: “Henrique é esta criança com argumentos de adulto. Henrique é a inteligência que deveria triunfar sobre a incompetência. Henrique é a luz que deverá absorver a sombra. Henrique é a audácia que deverá lutar contra o desânimo.”


Tem razão Jolly quando diz que esta é “a peça de uma geração”, a dos que não se furtam ao poder e não se perdem em utopias. A geração daqueles que querem, já sem medo de dizerem que o querem. A estratégia é agora mais perigosa e incómoda: dizer que não. Teatro de resistência, teatro de persistência, teatro de experiência. “Estas crianças somos nós. Nós. Os que chegámos agora. Os que chegámos há pouco tempo. Nós aqui, como estas personagens, que procuram um lugar neste reino, aqueles que partem do que já existe e que continuam depois daquilo que fica. Nós os que não queremos chorar um passado distante que já foi feliz e que gritamos o nosso desejo de mudar o presente, de o acreditar maior ainda, menos cobarde, menos injusto e mais livre.” Teatro de luta, teatro de guerra, teatro de vida. “O nosso reino em perigo aflige-nos e escolhemos não desistir. Saberemos bem como o cumprir.” Teatro que mete medo, alimentado por uma força imbatível, crente, quase crística, nunca mística, sem os tiques cobardes da metáfora, lançado sobre o precipício da experimentação. Teatro de risco, teatro de desafios, teatro que se pensa.


Henry VI é — assim, afirmativamente — “a história da lenta degenerescência do mundo”. Nela o teatro, reduto eterno da possibilidade de reescrita da História através do alerta de consciência, posiciona-se “como lugar de pensamento, de alerta, de curiosidade, da revelação da inteligência dos sentidos, da emoção, da beleza, da força da linguagem, do virtuosismo dos poetas, novos ou antigos”.

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