Tchékhov X 2: turbulento e enigmático

A dose dupla de Tchékhov será um dos pontos fortes do Alkantara Festival. E se Elas Fossem para Moscou?, de Christiane Jatahy, e O Cerejal, dos tg STAN, mexem nas entranhas do tempo, da mudança, da instabilidade e do capitalismo. E sujam mesmo as mãos.

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E se Elas Fossem para Moscou?, da brasileira Christiane Jatahy, põe o dedo na ferida de Três Irmãs: a inacção FOTO: ALINE MACEDO
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O Cerejal é para os tg STAN uma questão de actualidade — a capitalização do mundo —, não a Rússia de há 100 ou 150 anos FOTO: KOEN BROOS

“A gente queria falar sobre o desejo de mudança e sobre a dificuldade que é mudar (…). Mudar é como morrer um pouco – a gente nunca mais vai ser a mesma.” Julia Bernat, Stella Rabello e Isabel Teixeira anunciam o programa para E se Elas Fossem para Moscou? e só depois se enfiam nas suas personagens, respectivamente Irina, Maria (Macha) e Olga, as Três Irmãs, de Tchékhov, tal como revisitadas por Christiane Jatahy no espectáculo de abertura do Alkantara Festival (25 a 27 de Maio, Teatro São Luiz). Querendo mergulhar mais fundo nesse impulso da mudança, a encenadora brasileira trabalhou a encenação em sintonia com uma investigação realizada no âmbito de outro projecto seu, Utopia.doc, para o qual entrevistou dezenas de pessoas que fizeram a trouxa, abandonaram um lugar e deixaram para trás, desamparado, um passado. Falou com emigrantes, refugiados e gente que simplesmente se deslocou pelos mais variados motivos. Em todo esse material, que resultou num documentário, Jatahy encontrou um único denominador comum: “O que mobiliza as pessoas para sair é a impossibilidade de estar”, resume.

Parece evidente. Mas não é assim tanto. Impossibilidade de estar não é igual a desejo de partir. É algo de radical, de impositivo, de violento. Não se funda numa vontade; funda-se num impedimento, numa não-escolha. Na peça de Tchékhov, tudo parece empurrar as três irmãs para fora da casa de família após a morte do pai. E, no entanto, o mundo continua a girar sem que a ideia de partir passe de uma intenção ou de um plano anunciado, como se as três se encaminhassem para a porta e uma mão invisível as impedisse de sair. Como se Moscovo, esse lugar de utopia no horizonte das três, fosse sempre um lugar incapaz de lhes estimular acção, um lugar apenas para admirar de longe e em cima do qual acumular sonhos. Quando Jatahy altera o título da peça para E se Elas Fossem para Moscou?, está a denunciar e a recusar essa impossibilidade. E se fossem mesmo? E se a sua impossibilidade de estar produzisse resultados, em vez de embalar as irmãs num sono paralisante?

As três irmãs são também três idades e três diferentes posturas relativamente à mudança. Diz Jatahy: “Irina é esse impulso juvenil, o impulso de mudar o mundo lá fora; Maria é a idade entre os 30 e os 40, em que a vida já existe, não está sendo escrita de início, e às vezes é tomada por aquele sentimento da urgência – se não mudar agora, não vou conseguir nunca mais escrever de maneira diferente; Olga é a fase em que a história já é tão extensa que nem sabe mais se é possível escrever alguma coisa diferente.” Se Maria, roubando uma fala do seu pretendente Verchinin – nesta versão da peça, as três irmãs apropriam-se de todas as falas do texto de Tchékhov –, fantasia com uma existência vivida a dois tempos – uma primeira vida como rascunho, uma segunda para corrigir os erros da primeira, que assim deixariam de ser fatais –, para Irina esta ideia é simplesmente absurda por ter ainda a vida pela frente, e para Olga já houve tempo suficiente para acolher o arrependimento. Maria parece, nesse preciso momento, entalada entre o medo do passado e o medo do futuro.

Na peça de Jatahy, na verdade, tudo acontece nesta constante viagem pelo tempo, que a encenadora habilmente prolonga na forma como E se Elas Fossem para Moscou? se dá a mostrar ao público: enquanto peça de teatro, mas também como experiência cinematográfica. Em cada representação, ao mesmo tempo que o público assiste no teatro ao desenrolar da peça, numa outra sala, próxima, outra assistência é colocada diante da filmagem e da edição da peça filmada em directo; assim se constroem não apenas duas experiências distintas da mesma representação, mas, mais importante para Jatahy, um flirt provocador com a linha temporal. O filme, se o podemos observar como uma manipulação do presente (é o olhar da encenadora/realizadora que se impõe sobre o palco, reduzindo a informação visual do espectador), não deixa de ser, extremadamente, uma colherada no passado – para a imagem poder ser mostrada já tem de ter acontecido. “O teatro é sempre sobre o tempo presente e é justamente esse o milagre desta arte, porque só acontece naquele momento – é o presente do público e é o presente dos actores. O cinema é sempre o registo do passado, quando vejo já aconteceu”, diz.

A gestão das duas linguagens – que Jatahy iniciou com o anterior Senhorita Júlia, de Strindberg, estreado no mesmo ano que o Fraülein Julie de Katie Mitchell (mostrado no Verão passado em Almada), e abordando a mesma peça com as mesmas questões de cruzamento entre o teatro e o cinema, ainda que com uma “cara final” bastante diferente – terá sido o maior desafio para a encenadora brasileira nesta aproximação a Tchékhov. “Na hora em que eu penso que a peça se dá no teatro, e ao mesmo tempo que tem de se dar completamente como teatro, também tem de se dar completamente como cinema”, explica. “A grande questão era conseguir que a experiência fosse plena para o espectador nos dois lugares, por isso toda a dramaturgia que fui construindo tem muitas camadas.”

Por exemplo: quando o irmão das três, Andrei, toca em palco, a música composta por Domenico Lancelotti está pensada como banda sonora para o filme, e não tanto como momento musical que invade calmamente o teatro. Num dos vários momentos de ruptura – entre passado e presente, entre ficção e realidade  que Jatahy vai espalhando pela peça como acidentes previstos, David Lynch é assumida referência. Especificamente quando a encenadora empurra as três irmãs para o território do sonho – os sonhos, na verdade, vão sendo varridos e deitados numa gaveta chamada Moscovo –, onde se cumprem os anseios, mas também onde se liberta a tensão provocada pelo medo da mudança. O cinema aproxima ainda o público da experiência das irmãs: cada espectador sabe sempre da existência de um lugar onde não está, onde se pode cumprir uma utopia de que está ausente.

Jatahy dispensa o incêndio com que, no terceiro acto, Tchékhov faz abater o caos sobre cidade. Na verdade, a encenadora troca os elementos primordiais: ao fogo prefere a água, mergulhando as três em medos e desejos, permitindo que de um pequeno aquário possam emergir para retomar ainda e sempre a mesma pergunta: como se faz para mudar?

Tempos confusos

Tchékhov é um autor subterrâneo. Muito do que se passa nas suas peças jaz no subtexto, nos espaços criados entre aquilo que é explícito e tudo o que se esconde por baixo. Entre o dito e o não dito. É também este espaço que faz com que a actualidade possa entranhar-se em cada nova encenação dos textos do dramaturgo russo. Christiane Jatahy admite que reformula os espectáculos constantemente, sublinhando a inevitabilidade de as peças rimarem com o presente – a emigração e os refugiados acabam por ser tangenciados em E se Elas…, enquanto Irina lhe surge como uma possível representante dos estudantes liceais brasileiros que “estão tomando as escolas para reivindicar o seu direito a uma educação digna”. Jolente de Keersmaeker, dos belgas tg STAN, que trazem ao Alkantara, entre 2 e 4 de Junho (Teatro Nacional D. Maria II, Lisboa), a sua versão de O Cerejal (The Cherry Orchard), refere-se também a essa crença de que levar à cena Tchékhov (ou Ibsen, Gorki, Schniztler) é uma questão de actualidade. “É estúpido dizê-lo”, desabafa com o Ípsilon, “mas falam sobre aquilo que está a acontecer no presente”.

No caso de The Cherry Orchard, tratar-se-á de um dos textos mais intrigantes de Tchékhov, que Jolente (irmã da coreógrafa Anne Teresa de Keersmaeker) classifica como “uma das primeiras peças pré-beckettianas”. “É uma obra-prima que fala a tantos níveis distintos do ser humano – mistura comédia, tragédia, absurdismo… Há várias cenas sem qualquer desenvolvimento dramático e sabemos desde o início o que vai acontecer no final – o cerejal vai ser vendido.” Desinteressados da Rússia de há 100 ou 150 anos, pouco seduzidos pela queda da aristocracia no país dos czares nos primeiros anos do século XX, os STAN fazem ecoar de forma sonora no seu Cerejal a noção de que “tudo na nossa sociedade tem de ser capitalizado e tem de ter valor monetário”.

Sabemos desde o início que as dívidas da família equivalem a uma queda em desgraça. Liubov regressa das suas aventuras parisienses, consolo e fuga depois do afogamento de um dos filhos, e passa toda a peça num longo processo de despedida e de aceitação da perda. Ela e o irmão, Leonid, diz Keersmaeker, “lutam sem lutar – já sabem que não podem vencer esta guerra com palavras”. De pouco lhes valem o património afectivo do lugar, as recordações da vida familiar passada ali desde sempre. A beleza, a memória e a história nada podem contra a ditadura do capital. Mas O Cerejal é uma peça irregular, nebulosa, pouco clara debaixo desta primeira camada. “Parece-me muito misteriosa”, confessa Jolente, “Isso é algo de que gosto muito. Para mim, é uma peça subcutânea, em que não podemos dizer com absoluta segurança que nos fala disto ou daquilo. É uma peça confusa, mas também vivemos tempos confusos.”

the cherry orchard teaser ( by Ros Kavanagh ) from Jan Bosteels on Vimeo.

Essa qualidade esquiva da peça final de Tchékhov torna-a quase inesgotável na interpelação que faz ao actor. “Quanto mais representamos O Cerejal mais gosto da peça, porque quanto menos a percebo mais sinto que há algo que me empurra e me diz para fazer uma e outra vez”, comenta a fundadora dos STAN, fundamental companhia do teatro europeu, cuja matriz passa pela autonomização dos actores, prescindindo de encenadores. “Estou portanto muito feliz por voltarmos agora a fazê-la, porque o mundo mudou desde que a fizemos pela última vez, no Outono. Eu mudei, as pessoas da companhia mudaram, vivemos muitas coisas. É o tipo de peça que parece que tem de crescer em nós.”

Esta recusa em fixar-se, mantendo-se matéria volátil, é o que qualifica uma peça de teatro como obra-prima, no entender de Keersmaeker. Um texto que não se deixa barricar num só sentido, que ressurge constantemente exigindo releituras e propondo olhares novos que nunca se tinham vislumbrado antes, é prova de mestria e de legítima candidatura à eternidade. O Cerejal tanto pode fazer pensar na lei mercantilista, na inevitável destruição emocional e na solidão trazidas pela conquista do poder, na instabilidade e na incoerência humanas ou na dificuldade de nos libertarmos do passado – sendo tudo isto, ou nada disto, ou qualquer outro ponto entre os dois extremos.

Essa incerteza de intenções e o final previamente anunciado fazem Jolente pensar na peça como uma tragédia grega. Antígona, por exemplo – “nunca saberemos por que ela quer enterrar o irmão”, justifica. O mundo, os homens e as mulheres são complexos, nada têm de achatados. E estas duas peças, turbulentas, inquietantes e enigmáticas, trazem tudo isso à superfície. Não há respostas fáceis, não há sentidos únicos, não há significações taxativas. O teatro tem mais sangue quando é palco de incertezas.

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