Tales: os encontros dos destinos invisíveis do Irão

Rakhshan Banietemad filma como se concretizasse uma vocação irreprimível do cinema: dar visibilidade às vidas invisíveis.

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A realizadora Rakhshan Banietemad (ao centro) e os actores Habib Rezaei (à esquerda) and Peiman Moad REUTERS/Tony Gentile

Rakhshan Banietemad di-lo de forma sugestiva: acredita que as pessoas que não têm voz, cujos destinos são invisíveis, acabam sempre por se encontrar, por cruzar as suas vidas, por se amarem e deixarem, por partilharem a dor. Tales é o novo filme da cineasta iraniana.

Trabalha esse encontro como afirmação da resiliência humana, para lá das contrariedades. A rodagem de Tales (a concurso), por exemplo, é mais uma das histórias de censura imposta aos realizadores no Irão – no dia em que o filme foi exibido à imprensa, quinta-feira, o júri da competição do Festival de Veneza anunciava manter simbolicamente duas cadeiras vazias entre as dos jurados, homenagem a um cineasta ucraniano, Oleg Seentsov, e a uma cineasta iraniana, Mahnaz Mohammadi, presos recentemente, acusados de campanhas conspirativas contra os seus países.

Mas Banietemad não quer insistir nesses relatos: o que lhe interessa é “a alegria”; porque o filme existe. Não querendo pactuar com a estrutura censória do cinema iraniano, porque isso – pedir autorização para filmar – seria legitimar esse sistema, mas não querendo também, não era alternativa, mergulhar no underground, como acontece a outros colegas seus, encontrou um espaço na legislação e na burocracia: uma curta-metragem não precisa de autorização para ser filmada, por isso escreveu várias histórias, cada uma funcionando como uma curta, e, se alguém lhe dissesse algo, ela poderia responder que não há lei que proíba a exibição de Tales, este conjunto de curtas-metragens de seguida.

Rakhshan Banietemad é assertiva neste aspecto: não filma sem ter a certeza de que há condições para o filme ser exibido no Irão – Tales vai sê-lo, no Outono. Peyman Moadi, um dos seus actores (era o marido de Uma Separação, de Asghar Farhadi), está em sintonia: um prémio num festival internacional ou um Óscar, como aquele atribuído ao filme de Farhadi, podem fazer pela carreira dos seus autores, mas o decisivo é essas histórias poderem encontrar-se com os iranianos, e com todos os seus destinos invisíveis.

Essa é a música do belíssimo Tales. Pensar nele como uma colecção de episódios independentes é não estar a ver o filme: Rakhshan Banietemad liga as histórias tornando invisíveis as costuras ou as marcas de colagem, conseguindo assim filmar, de facto, essa convicção da existência de uma comunidade de excluídos ou de esquecidos, de que as pessoas sem voz e sem visibilidade acabam por partilhar os mesmos espaços; aqui elas são prostitutas, taxistas, desempregados ou reformados, cruzam-se no metro, na burocracia de um ministério, num centro de apoio a suicidas, num táxi. Várias dessas personagens existiam em anteriores filmes da realizadora, que as trouxe de volta para actualizar as suas vidas – como se, de alguma forma, isso fosse um imperativo moral.

Anda por Tales sempre um motivo: o cinema como o irreprimível. Parece-nos ser essa a razão porque Tales guarda para o fim as suas duas histórias mais autónomas, formalmente até separadas do fluxo contínuo que é o sopro de Tales.

São episódios em que o amor e o desejo nunca se conseguem declarar livremente, enredadas que estão as personagens no seu passado ou no seu presente, mas são histórias em que isso, que é invisível, está a ser revelado, arte da realizadora e dos seus actores, em toda a superfície do ecrã.

 

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