Supernova tropicália

Foto

Cinco filmes para descobrir um realizador engajado e apaixonado que procurou filmar um país em todas as suas contradições

Glauber Rocha

Barravento; Deus e o Diabo na Terra do Sol; Terra em Transe; Antônio das Mortes; A Idade da Terra

3 DVD ?Midas Filmes

*****


Glauber Rocha (1939-1981) é um daqueles nomes de que se ouviu falar mas que pouco se viu. Em 2012, a Cinemateca Portuguesa e Guimarães 2012 prestaram-lhe a homenagem devida, com esta edição em DVD a possibilitar agora que as suas principais obras cheguem ao máximo de espectadores possíveis, nas versões restauradas a partir dos negativos originais que os herdeiros supervisionaram ao longo dos últimos anos.

Para quem nunca viu um filme de Glauber, o embate vai ser inevitavelmente brutal e a edição da Midas é o ponto de entrada ideal. Pega nos três filmes-chave da obra – Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), Terra em Transe (1967) e Antônio das Mortes/O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro (1969) – e enquadra-os com a primeira e a última obras do realizador, Barravento (1962) e A Idade da Terra (1980). Permite desenhar o percurso de Glauber, o modo como o seu cinema “tudo ao mesmo tempo agora”, primitivista e experimental, mergulha progressivamente mais fundo e voa cada vez mais alto, como uma supernova que consome tudo no seu caminho. Pode-se dizer tudo o que se quiser do cinema de Glauber – e provavelmente ter-se-á sempre razão – mas nada, rigorosamente nada, em nenhuma outra parte do mundo, atingiu a conjugação improvável de rigor cinéfilo e liberdade criativa que talvez só pudesse existir desta maneira num universo fora dos grandes centros “clássicos” de produção.

O que Glauber fez é simples: um melting-pot antropofágico, canibalizando pedaços e convenções de géneros e estilos num caldeirão a ferver com referências culturais indígenas, transmutando-as numa espécie de “estética da pobreza” urgente, idealista, romãntica, selvagem, barroca, em busca de uma liberdade e de um caminho intransmissivelmente brasileiros. Glauber foi o primeiro e o maior de todos os tropicalistas, o movimento bahiano que revelaria uma geração crucial da música popular brasileira. Caetano Veloso nunca hesitou em afirmar publicamente a dívida dos tropicalistas ao cinema de Glauber, norte que indicava as potencialidades de uma arte puramente brasileira, bruta e sofisticada, cosmopolitana e provinciana, onde a “alta cultura” e a “baixa cultura”, o erudito e o popular, se miscigenavam sem preconceitos. Eisenstein e Godard, Rossellini e Ford, os romances de cordel e o western, os folclores nordestino e bahiano e o panfleto político.

Um vale-tudo potencialmente indigesto? Sim, inevitavelmente, mas quando essa indigestão vem de braço dado com um cinema que literalmente nos agarra pelos ombros e nos obriga a pensar e a tomar posição, e que o faz com o entusiasmo contagiante de quem não consegue esperar para partilhar o que tem a dizer, pois bem, vale a pena ter os comprimidos para a azia à mão.

Glauber era o cantor de um Brasil telúrico e contraditório. Veja-se a estrutura bipartida do torrencial Deus e o Diabo na Terra do Sol, história de um camponês sertanejo que procura sobreviver entregando-se primeiro à religião e depois ao banditismo, para acabar exactamente no mesmo ponto onde começou. Imagem de um povo perdido e manietado que Glauber continuaria a afinar no seu cinema apostado em acordar consciências e apontar as contradições constantes de um Brasil dominado por elites gananciosas. Não é outro o tema de Terra em Transe, onde a luta pela liberdade se transfere para a dimensão política através da alegoria dissonante de um poeta idealista forçado a comprometer os seus ideais.

Ambas as dimensões se confundem em Antônio das Mortes (prémio de melhor realizador em Cannes), quase-sequela de Deus e o Diabo..., onde Glauber ensaia pela primeira vez a cor de modo psicadélico e sangrento, onde a dialéctica do opressor e do oprimido se disfarça de western fajuto (feijoada em vez de spaghetti) e teatro folclórico de rua com subtexto político. Os três filmes, respectivamente segunda, terceira e quatra longas das nove assinadas pelo cineasta, compõem um tríptico central para a compreensão das paisagens da cultura brasileira dos anos 1960, da vontade de criar uma linguagem própria, um esperanto revolucionário-tropicalista.

Antes da trilogia, houvera Barravento, primeira longa. Começou por ser a estreia do amigo Luiz Paulino dos Santos que, na sequência de um primeiro período de rodagem desastroso, foi despedido e substituído por Glauber, que reescreveu e terminou o filme; resultou uma tragédia etnográfica cujo neo-realismo marinado no misticismo bahiano anunciava a chegada do tropicalismo. Depois, haveria uma progressão em direcção ao experimentalismo puro e duro, culminando em A Idade da Terra, que exigiu dois anos de montagem e estrearia em Veneza 1980 onde, arrasado pela crítica, ganhou aura de filme maldito.

Interminável happening psicadélico de duas horas e meia onde o sublime e o intragável se tocam, experiência formal concebida para ser projectada sem ordem de bobinas e que exige ao espectador uma resistência quase impossível, A Idade da Terra é um filme-súmula do universo Glauber, depois do qual não haveria inevitavelmente mais para onde ir. Glauber Rocha morreria menos de um ano depois da sua estreia, A Idade da Terra ficou como testemunho/testamento dos limites práticos da sua obra, resumida na perfeição nesta caixa obrigatória para quem quer conhecer as ruas menos visitadas do grande cinema do século XX.

Sugerir correcção
Comentar