Sonhar em Londres e acordar em Cabul

Rui Horta estreia esta sexta-feira em Guimarães Cabul, uma criação com a Orquestra Metropolitana de Lisboa, embalada pela escrita de Heiner Müller e pela música de Morton Feldman.

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O actor Pedro Gil é o protagonista de Cabul Diogo Baptista
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Rui Horta, encenador Diogo Baptista
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Pedro Amaral dirige a Orquestra Metropolitana de Lisboa Diogo Baptista
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Maestro Pedro Amaral Diogo Baptista
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Momento do ensaio de luzes para Cabul Diogo Baptista
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O actor Pedro Gil é o protagonista de Cabul Diogo Baptista
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Cena de Cabul Diogo Baptista
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O actor Pedro Gil é o protagonista de Cabul Diogo Baptista

Desta vez, entra-se no espectáculo pela porta lateral do palco, e é mesmo no palco que o espectador se vai sentar e, de algum modo, fazer parte de um cenário pouco convencional: dentro desta “caixa negra” do Centro Cultura Vila Flor (CCVF), uma espécie de pista formada por estrados de madeira iluminados com néons serpenteia por entre uma orquestra e uma plateia amovível de cadeiras giratórias… Sobre essa pista, e ao longo de cerca de uma hora, uma personagem (Pedro Gil) narra um sonho guiado pela escrita do dramaturgo alemão Heiner Müller (A Missão, 1979) e embalado pela música do compositor norte-americano Morton Feldman.

Estamos em Cabul, nome da capital do Afeganistão mas também da nova criação de Rui Horta, que esta sexta-feira tem estreia em Guimarães, depois de um primeiro “ensaio” com público em Lisboa, na LX Factory, em Junho, e antes do regresso à capital para subir ao palco do Teatro São Luiz, no próximo mês de Março.

“Chamei-lhe Cabul porque há um momento na obra do Müller, o chamado ‘monólogo do elevador’, em que a personagem Saportas abre a porta e está no Peru. Achei que, 40 anos volvidos, Müller escolheria hoje Cabul, talvez o sítio mais perigoso do mundo”, explica ao PÚBLICO o coreógrafo e encenador num intervalo do ensaio da última quarta-feira.

Cabul é uma coprodução do CCVF, da Orquestra Metropolitana de Lisboa (OML) – instituições das quais Rui Horta é Artista Associado – e do Teatro Municipal São Luiz. É também a concretização de um sonho que o coreógrafo teve “há trinta anos atrás, em Londres”, depois de ter visto “uma peça do grande coreógrafo inglês Mark Morris, que já faleceu”. “Quis agarrar os farrapos desse sonho, e nunca o consegui fazer; obviamente estamos destinados a não o conseguir, como em qualquer sonho, mas o fundamental é tentar qualquer coisa”, diz Horta.

Essa atmosfera irreal e onírica encontra-se bem recriada no palco do CCVF, onde o espectador entra numa caverna de sombra, fumo e luz, sendo embalado – mas também sobressaltado – pela música interpretada ao vivo pela OML sob a direcção de Pedro Amaral, e ainda pela voz de Pedro Gil.

“A minha personagem é a de um encenador que sonhou uma obra e, ao acordar, tenta recordá-la, para a realizar. À medida que vai revivendo esse sonho, acaba por se confrontar consigo mesmo, com os seus medos, e por questionar a importância da obra para a sua vida e para a vida dos outros”, diz o actor, pouco tempo antes de “vestir” a sua personagem, que um sobretudo negro transforma numa espécie de Darth Vader quando empunha um néon como se se tratasse de um sabre de luz.

Cabul é o terceiro trabalho que Pedro Gil – um actor saído da “fábrica” dos Artistas Unidos – faz com Rui Horta, depois de Estado de Excepção, uma criação para Guimarães 2012 – Capital Europeia da Cultura, e Multiplex (2013), a partir de Memórias de Adriano, de Marguerite Yourcenar. “É um dos grandes actores do momento e da sua geração”, classifica-o o encenador, que com ele irá fazer a seguir Romeu e Julieta, numa coprodução do Teatro Nacional D. Maria II e da Companhia Nacional de Bailado.

 

Autobiografia?

Se a inspiração essencial para Cabul foi um episódio da sua vida pessoal, foi à escrita de Heiner Müller (1929-1995), e depois à música de Morton Feldman (1926-1987), que Rui Horta foi buscar a matéria para esta sua nova criação. “Este é um espectáculo difícil de classificar enquanto disciplina artística: é um híbrido entre o teatro, a música e a instalação (o espaço cénico). Baseia-se em A Missão, de Müller, que é uma obra extraordinária do seu teatro da revolução, mas, neste caso, mais precisamente no pequeno monólogo de Saportas, o homem no elevador”, explica o encenador. “Eu extrapolo essa ideia do homem enclausurado e a explorar os seus limites, e declino isso numa peça que eu próprio reescrevi – assim, o texto é mais meu do que do Müller”, acrescenta.

Um momento de reflexão autobiográfica? Rui Horta (n. Lisboa, 1957), com mais de 40 anos de carreira, admite essa leitura. “Talvez. Esta predestinação em relação a um percurso muito fechado, que é o do elevador, e depois a abertura para um espaço de perigo, de medo, em que te confrontas contigo próprio e com os teus limites... Talvez aí encontremos algum tipo de serenidade na vida.”

Já a música de Morton Feldman foi uma ideia desde o início associada ao projecto. De tal modo que a própria personagem de Cabul, no início do seu monólogo, repete várias vezes o nome do compositor: “Feldman, Feldman, Feldman. Eu sempre quis trabalhar com a música de Feldman…”

“Eu tive a sorte de ter dito ao Pedro [Amaral] que gostava muito de fazer uma peça com a música de Morton Feldman, que tem uma densidade atmosférica impressionante”, recorda Rui Horta. Essa densidade marca a atmosfera que o espectador vai encontrar no palco do CCVF, “e é sobre a música que assenta toda a acção”, explica o maestro ao PÚBLICO.

Piano and String Quartet [1985] e For Samuel Beckett [1987] são as duas peças interpretadas em cena, e que têm uma dimensão estruturante na dramaturgia”, acrescenta Pedro Amaral, chamando a atenção para o facto de “a música imergir o espectador dentro de um cenário sonoro totalmente inabitual”.

O carácter não convencional desta encenação estende-se, de resto, à própria execução musical: “Nós também não tocamos de uma maneira convencional; a primeira peça é só para piano e quarteto de cordas, e nós fizemos uma orquestração em que são as cordas todas da orquestra que se juntam ao piano”, nota o maestro, referindo que “se normalmente o teatro pousa no silêncio, aqui o teatro pousa na música de Feldman”.

Em Cabul, Rui Horta vive também a experiência nova de trabalhar com uma orquestra ao vivo. “É uma oportunidade incrível ter uma orquestra que me é oferecida. Quando é que eu podia imaginar isso há vinte anos? Pagar a 30 músicos não é para um artista independente”, diz o encenador e coreógrafo, que assim usufruiu do seu estatuto de Artista Associado da Metropolitana.

Também a associação com o CCVF lhe permitiu trabalhar numa estrutura que classifica como “um espaço de produção muito bom”. “Aqui jogo em casa, e é um lugar onde posso experimentar e errar, e para um artista é fundamental ter um espaço de laboratório, como na ciência”.

Depois de duas apresentações de Cabul em Guimarães esta sexta-feira (no final da estreia, marcada para as 22h, haverá uma conversa com o encenador moderada pelo programador Rui Torrinha) e sábado, Rui Horta regressará ao seu Espaço do Tempo, em Montemor-o-Novo. “Aí é que tenho o meu coração, mas é mais o meu lado de programador; é um mistério que eu ainda não percebi bem na minha vida – uma espécie de dupla personalidade, que muitas vezes entra em rota de colisão”, diz.

 

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