Somos todos maus e invejosos e toda a literatura é perversa

Gonçalo M. Tavares explicou este domingo no LeV, em Matosinhos, por que é que a literatura é naturalmente perversa. Na mesa seguinte, Mário Cláudio anunciou que vai lançar a sua autobiografia.

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No LeV - Festival Literatura em Viagem, em Matosinhos PAULO PIMENTA

“A literatura é naturalmente perversa”, defendeu este domingo no LeV - Festival Literatura em Viagem, em Matosinhos, o escritor Gonçalo M. Tavares, para quem o “instinto de maldade” é, de resto, condição de sobrevivência da espécie humana.

Francisco José Viegas já lembrara um episódio em que Agustina Bessa Luís lhe confidenciara o seu desdém por um romance então em voga com esta observação: “Não tem perversidade nenhuma”. E Tavares notou que a própria palavra perversidade sugere a ideia de “percorrer o verso, o outro lado, o que não é visível”, e que é precisamente isso que a literatura se propõe fazer.

O LeV, que esta segunda-feira rumou a Lisboa para uma sessão com Dulce Maria Cardoso e Rui Cardoso Martins na Fundação José Saramago, abriu a sua última tarde em Matosinhos com um debate, moderado por Pedro Vieira, entre o autor de Uma Menina está Perdida no seu Século à Procura do Pai e o romancista, e ex-secretário de Estado da Cultura, Francisco José Viegas. A organização propôs aos dois escritores o tema “Escrever, marchar”, acrescido de uma pergunta que substituía a guerra pela literatura na célebre afirmação de Clausewitz: “Será a literatura a continuação da política por outros meios?”.

Viegas abriu as hostilidades fazendo a defesa do conflito: “Um romance vive dos conflitos entre os personagens e precisamos desse conflito em qualquer obra de criação”, afirmou. Por isso mesmo não apreciaria uma “literatura que fosse uma espécie de continuação da política por outros meios”, já que a conformação ideológica suprimiria o conflito. Mas reconhece que há livros assim, e apontou como exemplo do “grande romance ideológico da literatura portuguesa” Os Fidalgos da Casa Mourisca, de Júlio Dinis.

Num entendimento mais etimológico da política a que o tema da sessão aludia, Gonçalo M. Tavares sustentou que “a literatura é necessariamente política, no sentido de intervir nos problemas da cidade”, e que tudo o que ele próprio escreve “é político, mesmo estando muito afastado das questões partidárias”. Viegas contrapôs que “é fácil dizer que é tudo político”. De facto, a conversa começava a ameaçar confinar-se a algumas generalidades mais ou menos batidas. Mas não foi o que aconteceu.

Relacionando a natureza política da literatura com a sua “obsessão pelo indivíduo”, Tavares evocou um poema de Maiakovski em que o poeta russo vê 99 homens a bater num homem e pensa: “Não sei o que aquele homem fez, mas sei que não serei o centésimo”. Para o autor português, só faltaria acrescentar “serei o segundo”, já que, diz, “se a arte é política, é porque de certa maneira se coloca nessa posição de ser o segundo”.

Insistindo em reivindicar os seus próprios livros como políticos, referiu que Uma Menina está Perdida no seu Século à Procura do Pai trata da trissomia 21, um tema do qual “podemos dizer que não tem nada que ver com política, mas que evidentemente tem”. E lembrou que, muito antes de avançarem com a “solução final” para os judeus, os nazis tinham já lançado um programa de extermínio de deficientes, o Aktion T4, no qual foram executados loucos e  pessoas com síndrome de Down ou com paralisia cerebral.  

Se esta “maldade colectiva” o choca, a maldade individual corresponde, acredita Tavares, a um instinto natural da espécie, sem o qual esta já teria perecido. “As pessoas, no limite, dizem: prefiro que tu morras em vez de mim”, defende. Um instinto ocasionalmente quebrado por um acto de sacrifício, reconhece, como a mãe que dá a vida por um filho. O autor sugere mesmo que esse é um bom critério para fazermos o balanço do nosso percurso existencial: “Perguntarmo-nos por quantas pessoas estaríamos dispostos a romper este contrato humano da maldade”, propõe. “Se no final da vida a resposta for nenhuma, então acho que de algum modo falhámos”.  

A conversa já se tinha aproximado do tema do mal com a evocação de Viegas do romance Margarita e o Mestre, de Bulgakov, e a partir daqui foi esse o verdadeiro centro do debate. Enquanto Viegas resumia o recente O Meteorologista, de Oliver Rolin, em torno de uma improvável vítima das primeiras purgas estalinistas, ou descrevia as máquinas de banalização do mal concebidas por Gonzalo Torrente Ballester em Fragmentos do Apocalipse, Tavares ia levando a discussão para uma espécie de teoria do mal, propondo como primeiro axioma a tese de que nem o mal nem o bem são definíveis per se e só adquirem pertinência em função das circunstâncias.

O escritor colocou a assistência perante um dilema clássico: um comboio sem travões vai matar cinco homens que trabalham nessa linha, a menos que quem o conduz tome a iniciativa de mudar de linha, e então morrerá apenas um homem que trabalha nessa segunda linha, mas que não morreria se quem vai no comboio prescindisse de tomar qualquer acção. “O que é agir bem ou mal” nestas circunstâncias?, perguntou, prevendo que entre o público alguns optariam por mudar de linha e outros não. Desafiado por Viegas a dizer o que ele próprio faria, observou que “a decisão do que é o bem e o mal é sempre um dilema e não há nenhuma boa solução”, mas acabou por não fugir à questão: “Diria que tento treinar todos os dias para que quando estiver numa situação destas optar por mudar o comboio de linha, mas conscientemente, assumindo a responsabilidade individual”.

“E se são cinco serial killers, e os vais salvar para matar esta senhora que aqui está?”, insistiu Viegas. “Se misturares elementos humanos, as coisas mudam sempre”, respondeu Tavares: “É bondoso matar 200 pessoas para salvar a minha mãe? É bondoso matar a minha mãe para salvar 200 pessoas?”. Por esta altura, a sessão já tinha felizmente descarrilado por completo, salvando um número considerável de potenciais vítimas do que poderia ter sido mais um debate corriqueiro sobre literatura e política.

Cláudio anuncia autobiografia
Viegas e Tavares deram depois a vez a Mário Cláudio, entrevistado em directo pela jornalista Maria João Costa. Já no final da conversa, o romancista, que publicou recentemente O Fotógrafo e a Rapariga, deixou uma revelação: depois de ter escrito tantas biografias, prepara-se agora para publicar a sua autobiografia: “Acho que a idade já o justifica”, comentou, adiantando que “vai ser um livro bastante grande” e que, “se tudo correr bem, sairá no fim do ano”.

Sem saber ainda que o autor iria anunciar esta autobiografia, a entrevistadora perguntara-lhe antes se a escrita “é um jogo entre ocultação e revelação”, o que deu pretexto a Mário Cláudio para exprimir a sua convicção de que um escritor “não só se expõe sempre, como se expõe na razão directa daquilo que oculta”. Os autores “afivelam máscaras que acabam por ser muito mais reveladoras do que o próprio rosto”, diz. “Esse é para mim um dos grandes sortilégios da escrita”.

Um princípio que depois alargou a outros domínios, defendendo que “também na nossa vida relacional, quando mais as pessoas se escondem, mais se revelam”. E elegeu a inveja como “o sentimento menos susceptível de ser ocultado”. Observando que “somos todos invejosos”, mas que ninguém o admite, recomenda que não tentemos esconder a inveja, até porque “ela salta sempre à cara”.

E entre os escritores, há invejas?, perguntou Maria João Costa. Cláudio confirmou que as havia e confessou que quando vira que o tema da sessão era “Quantos conflitos se geram durante uma vida literária” se convencera mesmo de que a conversa iria ser sobre isso.  

Acha natural que os escritores mais novos tentem ocupar o mais rapidamente possível o lugar dos mais velhos, e tanto critica os jovens autores que tentam a todo o custo estar na moda como os consagrados que se irritam por ver os seus lugares ameaçados: “muitos consagram-se a eles próprios, quando têm vocação para busto, e é saudável que os jovens tenham a tentação de os derrubar”. E não se coloca de fora, garantindo que, com a “grande angular” que a idade lhe permite, ao constatar “as figuras que os outros fazem”, vê as figuras que ele próprio fazia “quando tinha 40 ou 50 anos”.

Hoje “há uma nova geração de dois em dois anos porque elas esgotam-se muito depressa”, diz. Lembrando que se estreou com um “magríssimo” livro de poesia aos 29 anos, estranha ver “miúdos de de 17 ou 18 anos a publicar romances de 400 páginas”. São “romances horríveis”, prossegue, “mas agora há editoras que publicam tudo o que lhes mandam desde que se pague, o que não acontecia no meu tempo, quando uma editora só dava a sua chancela ao que tivesse um mínimo de qualidade”.

O seu palpite é de que “os que andam por aí de feira em feira, de evento em evento, a deixar marcas por tudo quanto é sítio, a despir-se em cima dum estrado - e são mais do que as mães - são precisamente aqueles que não vão ficar”.

Os outros são “os que sabem que um percurso de criação não se constrói estando na moda”. E Cláudio aponta um dos seus antecessores na mesa, Gonçalo M. Tavares, como “exemplo do que um escritor deve fazer”. Sendo “um autor de indiscutível talento e muito traduzido - o que é raro”, diz, já que “não são os muito bons que costumam ser traduzidos, mas os muito vendáveis” -, Gonçalo M. Tavares é também alguém que “está na escrita como um profissional: resiste às modas e não anda a promover-se pelas feiras todas do país e a sujeitar-se ao ridículo dessa usura”. Por isso mesmo, vaticina Mário Cláudio, “vai durar”.

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