Sokurov entra para o museu, Wiseman continua no mundo

O americano vai ao encontro das gentes de Jackson Heights, bairro multicultural de Queens, Nova Iorque - o cinema precisa dos vivos. O russo não sai do Louvre, a arte é o único consolo - o cinema vai ao encontro dos fantasmas.

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Wiseman não consegue dizer-se “optimista” ou “pessimista” em relação ao resultado dos gestos e manobras das organizações de imigrantes que actuam, lutam e se defendem em Jackson Heights AFP
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Membros da equipa de Sokurov: Louis-Do de Lencquesaing, Vincent Nemeth, o próprio Alexander Sokurov, a actriz Johanna Korthals Altes e o actor Benjamin Utzerath Reuters

Mesmo se Donald Trump, candidato republicano às eleições presidenciais americanas, “é um palhaço”, não acreditando Frederick Wiseman que qualquer do seu ideário xenófobo possa vir a ser um dia concretizado em legislação, o cineasta americano mantém a sua proverbial reserva.

Não vai em generalizações, por isso não consegue dizer-se “optimista” ou “pessimista” em relação ao resultado dos gestos e manobras das organizações de imigrantes que actuam, lutam e se defendem em Jackson Heights, Queens, Nova Iorque. Este bairro é uma viagem a vários mundos culturais e étnicos, tudo sem sair de algumas ruas. Começou, no século XIX, por atrair judeus, italianos e irlandeses, mas as rendas mais baratas e a proximidade de Manhattan levaram o resto do mundo até ali. Agora chegam os imigrantes ilegais “molhados” pelo Rio Grande, como antes chegavam os imigrantes “molhados” pelo Atlântico: forma de dizer que é esse o tecido chamado América e Frederick Wiseman está nele, está In Jackson Heights (fora de competição).

Não é, por isso, um filme “sobre” um bairro de Queens, é um filme que “está”, durante três horas, num bairro de Queens. Capta os sons e as cores, pausas musicais. Está atento ao que acontece nas ruas, o que faz dele um filme mais dependente “da sorte” e do imprevisto do que aqueles em que Wiseman circula por um edifício ou por uma instituição, casos em que as suas “fontes de informação” são mais fiáveis e sabedoras. E encontra - agora mais previsível em termos do que acontece habitualmente no cinema do documentarista - quem se mobiliza, quem fala, quem actua.

O bairro está a mudar, a gentrificação ameaça a rede humana e social dos pequenos comerciantes  - como a homofobia cerca aquele que se orgulha de ser um bairro pioneiro nas demonstraçoes LGBT. Não vale a pena perguntar a Wiseman o que ele pensa sobre estes “temas”, onde é que se coloca nas argumentações. O seu cinema não é jornalístico, não discute temas, filma gente – grupos, instituições, por isso alguns edifícios parecem vivos… – a organizar-se, a agir, a trabalhar, a lutar pelas suas razões. O afecto do cineasta, disfarçado às vezes com ironia e quase sempre com reserva, forma também de controlar o cepticismo, vai para as pessoas. A derrota não se exclui, mas o movimento é tudo o que temos. Como dizia Wiseman, ele admira o trabalho dos restauradores de quadros da National Gallery de Londres, onde também esteve (National Gallery, 2014), e no entanto, estando nos quadros representados a guerra, as doenças ou a intolerância religiosa, eles mostram que nada aprendemos.


O mesmo poderia dizer, e diz, Alexander Sokurov, que já esteve num museu, o Hermitage de São Petersburgo (A Arca Russa, 2002), e que agora não sai do Louvre: Francofonia, filme exibido em competição, “reconstitui” a aliança franco-alemã, nas pessoas do director do museu, Jacques Jaujard, e de Franz Wolff-Metternich, nomeado por Hitler quando ocupou Paris, para protegerem as obras do museu — “reconstituir” não é palavra certa, porque Sokurov não faz reconstituição de época, Sokurov quer ir ao encontro da época, dos mortos.

Esta “passagem” de Wiseman para Sokurov, por causa dos “seus” museus, é bem curiosa: o americano, na National Gallery ou nas ruas de Queens, vai ao encontro de gente, é das pessoas que precisa; o russo alimenta-se dos fantasmas, pede a Tolstoi e a Tchékhov que acordem do seu sono eterno para lhe dar respostas, como se desejasse, idealmente, um edifício de onde o público tivesse sido varrido e preenchido com ideias, utopias - e filma Paris como se a idealizasse no momento de a captar, como se impusesse uma idealização, percorrendo-a como se voasse sobre um modelo, uma miniatura. A reserva de Wiseman dá vida ao relativismo, o cepticismo de Sokurov é absoluto e imperial: e o “povo”, como ele diz às tantas no filme, paternalista, autoritário esclarecido, é um referência pictórica, uma idealização. O cinema de Wiseman abre-se ao mundo, o de Sokurov fecha-se no museu.

É claro que quando dizemos “cinema museológico” não falamos nem de Wiseman nem de Sokurov. Falamos em Marguerite, de Xavier Giannoli (competição), que se inspira na figura da “socialite” americana Florence Foster Jenkins, amante de ópera que com tanta falta de talento e de voz massacrava os clássicos nas primeiras décadas do século XX. Assim nasce a figura de Marguerite Dumont (interpretada por Catherine Frot), milionária na Paris dos anos 20 que não consegue perceber, e ninguém é capaz de lhe dizer, como desafina terrivelmente. É um filme do baú.

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