Sobre a noite passada: Westworld questionou mesmo a natureza da nossa realidade

Fenómeno de especulação instantânea online, série enfrentou cepticismo da crítica. O pós-spoiler na era da pós-verdade? Identidade, consciência e dor. Valeu a pena? Este texto não contém spoilers.

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Anthony Hopkins como Ford HBO

“Este lugar parece mais real do que o mundo verdadeiro. Só que não é.” A frase podia ser um meme ou um remate sarcástico no Twitter, mas é um dos adágios de Ford, uma espécie de deus de Westworld – a série que terminou segunda-feira à noite em Portugal depois de ter criado uma vaga de “teorias de fãs” e entretidos caçadores de mistérios numa metanarrativa tanto apaixonante quanto criticada. Quer ser, nas grelhas dos canais, o sucessor de A Guerra dos Tronos, mas também pode ser uma alegoria da vida em 2016, essa grande sala de espelhos em que nem tudo é o que parece.

Um elenco de luxo, um conceito high brow, design de produção de topo, um sério pedigree na produção e autoria e mistura de géneros ficcionais com fartura. A primeira temporada de Westworld foi um dos títulos do Outono da televisão, erguida sobre o filme homónimo de Michael Crichton (1973) que se centra em Westworld, um parque temático para a inteligência artificial e a ética andarem de carrocel com a violência e a ontologia no Velho Oeste. Por isso mesmo, é metacomunicação sobre ficção: nas histórias, e sobretudo nas histórias em série, é essencial o worldbuilding, ou construção desse mundo e ambientes, e no parque de Westworld, onde os prazeres violentos têm mesmo fins violentos, é exactamente isso que se faz. Enterram-se aldeias, limpam-se cadáveres, redecoram-se saloons; mas também se constroem as “narrativas” que, como revelou o criador Ford (Anthony Hopkins) no 10.º e último capítulo da história, são todas “jogos”.

Neste parque hiper-realista, os humanos vêm do mundo exterior para se entreterem à custa dos “anfitriões” – andróides com diferente graus de “consciência”. “A série é sobre propósito”, postula ao PÚBLICO o argumentista e escritor Filipe Homem Fonseca. Acabado de sair de Westworld pela última vez, considera que o último episódio mostrou que o propósito, o objectivo, é o foco da história. “Mesmo que, como é dito pela [personagem interpretada por Evan Rachel Wood] Dolores seja uma mentira. Mentira que leva, como diz Ford, a verdades profundas. O sofrimento como caminho para o auto-conhecimento e a transformação. A ficção é o motor.”

Entretidos? Confusos? Em dez semanas, Westworld tornou-se numa das séries mais comentadas na Internet e nos media especializados. Filipe Homem Fonseca ficou-se pelas suas teorias, “mesmo sabendo não seguir as elaborações online é perder parte do gozo”. O professor Myles McNutt, da Old Dominion University, detalha no Flow Journal que Westworld “é talvez de forma mais óbvia um êxito para a HBO puramente pelo volume de conteúdo que gerou”. Nesta metaficção, o background das personagens não é de fiar – podem sempre ser reconfiguradas. A certa altura, a história divide-se em espaço e tempo. A morte pode não ser definitiva. A confusão aumenta. Com uma produção inicial atribulada – alguns episódios terão sido refilmados e reorganizados – e com a exigência da história a crescer, os críticos ficaram de sobreaviso. As teorias continuaram.

“Há uma ideia de camadas de realidade, se é que lhe podemos chamar assim. Respostas criam novas perguntas, colocadas num nível superior. Os 'fios' são puxados por alguém; e quem 'puxa os fios' desses que puxam os 'fios'?”, reflecte Filipe Homem Fonseca, autor de Aqui tão longe, para a RTP ou das rubricas de rádio Outra Coisa ou Não é Mau. “A série foi criada por Jonathan Nolan e Lisa Joy, mas duvido que o papel de J.J. Abrams tenha sido apenas o de produtor executivo”, defende sobre o realizador do último Star Wars. Tem a sua “marca d'água do senhor” – “o enigma, a charada”.

Esta série é o mais recente exemplo de algo que acontece com The Walking Dead, A Guerra dos Tronos, Mr. Robot ou The Leftovers, e acontecia antes com Perdidos e Ficheiros Secretos e até com fenómenos pré-Internet como Twin Peaks. Tentar resolver enigmas é parte da natureza humana. Está para lá do spoiler – é a peça do puzzle perdida. E Westworld é mais uma dessas séries ideais para colmeias como o Reddit, para dezenas de podcasts, sites de séries e páginas de televisão da imprensa serem uma caixa de ressonância de um jogo de charadas.

Mas jogar à apanhada com os argumentistas ajuda ou prejudica? Também se escreveu profusamente sobre isso nestas dez semanas. As febris teorias dos fãs “tornaram-se uma indústria”, escreve o Vox. E se é natural, como prova o hábito do bingewatching, querer voltar a uma história mesmo quando ela está suspensa por uma semana, há quem defenda que “a nossa obsessão por adivinhar as nossas séries antes delas próprias está a roubar-lhes parte do seu poder”, como é o caso o crítico Todd VanDerWerff.

Alan Sepinwall, crítico de televisão e autor de The Revolution is Televised, não esperou para ver o fim da primeira temporada de Westworld para lamentar que a série dê prioridade ao mistério e não às personagens. Após uma revelação sobre uma personagem central, “…não senti absolutamente nada”, constatou no Uproxx. Para ele, há uma distância entre o espectador e a série porque os autores estão entretidos com “jogos” e não a contar “a verdadeira história”. Filipe Homem Fonseca tem outra leitura – a morte de anfitriões, por exemplo, é uma espécie de nível num videojogo, “não é apresentada como o derradeiro risco para os personagens” por que “há coisas mais importantes em jogo – o livre-arbítrio, a identidade”. O núcleo de um labirinto. Esses “micromistérios” além do mistério central – o que raio se está a passar, afinal, e quem manda na rebelião robot –, são também uma fonte de “alegria” para o crítico Dave Schilling no Guardian.

Debater Westworld é parte da piada. Mas mesmo no Reddit é preciso saber que ele já é “palco de manipulações por parte de gente ligada às próprias produções discutidas”, mas também noutros campos, avisa. Para o espectador e guionista português, é por isso que “a série não podia vir em melhor altura: fala-se muito na 'era do pós-verdade'", nas 'fake news', e não podemos deixar de sentir, mais do que nunca, que alguém está a 'puxar os nossos fios', a moldar a nossa realidade”.

A temporada acaba com um estrondo e com algumas pistas para pôr a trabalhar os fãs – vislumbres de outras histórias, de outras culturas que podem ser outros mundos – até à segunda tranche de episódios. Os autores precisam de tempo para lidar com a “complexidade” da tarefa, disseram à Variety, e por isso só voltam em 2018. A HBO, a sua casa-mãe, precisa de uma série para substituir A Guerra dos Tronos, que se despede em... 2018.  

Westworld “tem sido um sucesso em Portugal”, diz Pedro Vaz Marques, da comunicação do canal TVSéries, que emite o original da HBO. “Está entre as séries mais vistas desde a criação do TVSéries em 2011 e sempre no topo das tabelas desde que estreou no início de Outubro”, detalha, sem avançar números de audiências. Em Portugal, tem a sua comunidade de fãs e até alguns, mais dedicados, como os estudantes da Universidade do Porto Francisco Múrias e Henrique Pinto, que se dedicaram a fazer um teste online exactamente sobre a natureza de cada um de nós. Nos EUA, foram 3,6 milhões de pessoas nas várias plataformas, com uma média semanal de 12 milhões. E a sua forma de consumo, entre o cepticismo, a saturação e a obsessão detectivesca, “revela como há lógicas para além do texto que moldam a forma como Westworld e séries futuras do seu tipo são experienciadas online”, sugere Myles McNutt.

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